Feios, sujos e o tio Paulo

No começo dos anos 1980, estreou no Brasil com atraso (a produção é de 1976), o filme Feios, Sujos e Malvados, do italiano Ettore Scola, premiado como melhor diretor no Festival de Cannes. A história da família Mazzatella envolve um prêmio de loteria escondido pelo patriarca Giacinto, que todos da turma querem roubar. A família imensa vive numa favela em Roma, com uma atordoante vista do Vaticano, e só consegue uns trocados quando leva a avó cadeirante ao banco para receber a aposentadoria minguada. Trabalhar, ninguém quer. A comédia fez o maior sucesso, ninguém imaginava tocar a vida naquela toada. E não é que, em 2024, aparece uma brasileirinha do bairro carioca de Bangu e coloca Ettore Scola no chinelo?

Érika, a cuidadora de Bangu, entra na história levando Tio Paulo ao banco para sacar um empréstimo de R$ 17 mil. Mal acomodado numa cadeira de rodas tomada de empréstimo num shopping, Tio Paulo já não sustentava a cabeça, não reagia quando o chamavam e nem conseguia segurar a caneta para assinar o contrato de empréstimo.

As duas bancárias que atenderam o idoso até acharam que ele estava com “uma corzinha estranha”, mas os médicos do Samu bateram o martelo: tio Paulo tinha partido desta pra melhor provavelmente antes de dar entrada no banco.  A cuidadora foi logo presa, não por homicídio, mas por vilipêndio de cadáver. Traduzindo: não tratou o extinto com o devido respeito.

Depois de estrelar memes (alguns muito bons) e receber ataques de tudo quanto é lado, inclusive dentro da cela, Érika chegou rapidamente à categoria de provável injustiçada. Nas redes, sempre nelas, já apareceu quem visse no massacre virtual mais uma apressada manifestação de preconceito social e machismo. Pode ser. Mas que o caso é bizarro, isso ninguém duvida.

Nenhuma reportagem até agora conseguiu esclarecer quem é (ou foi) Paulo Roberto Braga, o agora popularmente conhecido Tio Paulo. Sabemos sua idade, 68 anos. E já vimos onde morava: um cafofo miserável sem janela nem reboco numa comunidade da zona oeste do Rio. As vizinhas forneciam refeições improvisadas e nenhuma disse conhecer a cuidadora. Tio Paulo não tinha móveis, exceto uma cama improvisada. O único objeto que decorava seu refúgio era um vaso sanitário que, pelo jeito, não servia para o que fora fabricado.

Tio Paulo morava sozinho. Tio Paulo morreu sozinho. Tio Paulo não teve quem providenciasse seu enterro, nem fosse reconhecer o corpo no IML ou reivindicar algum cacareco que pudesse ser chamado de herança. Não fossem os registros de internação numa UPA de Bangu, a carteira de identidade e o empréstimo de 17 mil concedido por uma instituição bancária – que, pelo jeito, levaria um calote máster -, Tio Paulo teria passado os 24 mil dias de sua vida nas mais brancas nuvens. Ninguém parece tê-lo amado. Nem mesmo odiado. Levou no caixão só uma cota de ensurdecedor desprezo.

A morte de Tio Paulo, diante de um contrato de empréstimo consignado, levantou a lebre em todos aqueles que vivem sozinhos, sem filho nem chamego. Por alguns instantes, todo um segmento da população tremeu nas bases. Cheguei mesmo a ler posts de amigos que pediam dicas de como evitar uma ida forçada ao banco depois de encerrada a longa existência no chamado vale de lágrimas.

Ainda bem que todo escândalo na Era do Tik Tok dura só uma semana. Amanhã ou depois termina o reinado de Tio Paulo, o defunto que virou celeb. Passado o vendaval, é capaz de Érika se tornar porta-voz de uma corrente religiosa radical na crença de que a morte – especialmente, a de velhos solitários – não é o fim de tudo. Sempre haverá um empréstimo para assinar.

Os pacientes sumiram

Há quatro anos, ainda estranhando os primeiros dias de isolamento social, a gente tinha certeza que o lockdown ia durar, se muito, duas semanas. Chegou julho. A pilha de mortos por Covid-19 dava sinais de um crescimento apavorante, mas um fio de esperança unia milhares de rostinhos em lives e zooms: “Quando isso tudo acabar, nós sairemos melhores como nunca fomos”, prometiam as fadas madrinhas, baseadas em sei lá que evidência. Em 2024, todo mundo descobriu que fadas mentem. O “seremos melhores como nunca” foi a maior lenda urbana da paróquia.

As pistas eram claras. Atire a primeira pedra virtual aquele que não ficava reparando na decoração das casas de repórteres e entrevistados durante os telejornais. O mundo estava ruindo, nós não encontrávamos os amigos, dávamos banho em lata de ervilha, mas o que chamava mesmo nossa atenção era a coleção de xilogravuras do comentarista político, o paredão de livros falsos nas costas do ministro ou a esculturinha meio brega na estante do ídolo cult. A vida estava dura demais pra prestar atenção em fatos.

O efeito colateral desse desvio de foco foi a explosão de uma surpreendente maré de impaciência. Agora, que chegar de máscaras em ambientes públicos equivale a usar camisa volta-ao-mundo ou saia balonê, as pessoas exercem a impaciência sem o menor constrangimento. Quase como um direito divino.

Contou-me um motorista de uber que já se tornou rotina passageiros mal humorados porque o carro demorou cinco minutos pra chegar (ok, às vezes leva bem mais). A humanidade apagou da memória coletiva as horas passadas sob a chuva , de braço esticado para táxis que ignoravam os potenciais passageiros.

Junto com a impaciência, desenvolvemos também um vocabulário muito específico. Foi o único quesito em que nos tornamos melhores no pós-pandemia: a liberdade de enfileirar palavrões cabeludíssimos em qualquer situação – incluindo elevadores lotados de velhinhas com cabelos de algodão. A novidade é que os palavrões, agora, são proferidos pelas velhinhas.

Ninguém está livre de protagonizar uma cena de desnecessária sofreguidão. Falo com conhecimento de causa – ou, como se diz, lugar de fala. Até aí, zero novidade. Estou ciente de que jamais entrarei pra história como um monge budista contemplativo. Mas, sem perceber, engrossei o coro dos impacientes resmungões. No debate que se seguiu à exibição do documentário Brizola, de Marco Abujamra, no Festival É Tudo Verdade, alguém perguntou como a produção conseguiu cenas tão envolventes. Explicou-se que a equipe de pesquisa rebolou, coisa e tal.

Segunda pergunta: como vocês conseguiram estas cenas? Eu, lá no fim da sala, bufei: “Acabaram de fazer essa pergunta!” Soltei mais um ou dois comentários do tipo – em voz baixa, juro, sem comprar briga – e um rapaz, na fileira à minha frente, olhou pra trás, meio rindo meio sério: “Calma…”. Achei o conselho bom. Sosseguei o facho e voltei pra casa pensando justamente na pressa crônica que nos atinge. É preciso dar um jeito nisso. E logo.

O armário embutido da Gal

Passei – passamos – as últimas semanas embalados em torno da cantora Gal Costa. Melhor dizendo: nos últimos tempos, o nome da cantora baiana, falecida em novembro de 2022, apareceu de um jeito que ela nunca deixou acontecer ao longo da carreira, iniciada nos anos 1960. Gal foi musa tropicalista, exibiu as pernonas abertas enquanto tocava violão no palco, botou o Brasil pra dançar marchinhas e se orgulhava de desafiar qualquer guitarra quando cantava Meu Nome é Gal (de Roberto e Erasmo).

A Gal que ocupava os palcos com sua voz cristalina mantinha a vida pessoal interditada aos curiosos. Em entrevistas ao vivo dava respostas grosseiras quando algum repórter se atrevia a pensar em alguma pergunta mais íntima. Sabíamos que Gal tinha uma casa linda em Trancoso, comprou um apartamento show nos Jardins, em São Paulo, e adotou um garoto – seu sonho sempre explicitado era o de ser mãe.

Aqui e ali, a gente ouvia as fofocas: ela vivia com sua empresária, mas ninguém nunca confirmou à vera. Certa ocasião, a compositora Marina Lima, nos tempos em que ainda falava, deixou a discrição de lado e contou à colunista Mônica Bérgamo que tinha tido um balancê, balancê com Gal Costa. A cantora virou bicho, mas a história sumiu. A privacidade de Gal venceu.

Até que, no dia 9 de novembro de 2022, acordamos com a notícia: Gal morreu. Se estava doente – e estava -, só os muito próximos sabiam. Naqueles dias, uma perplexidade pairou nos olhares de Caetano, Bethânia e Gil e de todos os milhares de fãs espalhados por aí. Era complicado conceber o mundo sem os agudos de Gal. Valorizem essa última frase, porque quem a escreve é um fã radical de Elis Regina.

O que nem Gal nem nós podíamos imaginar é que a intimidade da cantora se transformasse num barraco de quinta categoria, com acusações à viúva e revoltas do filho agora maior de idade, formando um tricô de futricas da pior espécie. Foi como se todos se juntassem pra arrombar o armário de Gal e dele arrancar tudo o que estava guardado.

Na minha terra, o nome disso é desrespeito. Parece que ninguém – mesmo os mais próximos da cantora – se importa muito com o jeito que ela gostaria de ser tratada e lembrada. A marca Gal Costa virou terra de ninguém, cada um mete a colher e se acha no direito de dar um pitaco.

Pobre Gal. Defensora intransigente de um armário bem trancadinho, a cantora viveu 77 anos sacudidos, foi hippie, cabeluda piolhenta (era chamada assim nas ruas dos doces anos 1960), segurou a peteca da ditadura durante os anos em que seus gurus e amigos Gil e Caetano amargavam o exílio, deu a volta por cima, virou cantora chique e muitas vezes derrapou no breguinha sem perder a majestade. Você podia até torcer o nariz pro repertório, mas a voz da mulher era de abalar convicções.

Não adiantou nada: morta, Gal se transformou em tema de reportagens que tratavam menos de qualidades vocais e muito mais de lençóis amarfanhados. Entronada desde o velório como a viúva, sua ex-empresária virou vilã de novela, especialmente depois que sepultou a cantora em São Paulo e não, como seria vontade de Gal, ao lado da mãe, no Rio. Nos capítulos mais recentes, o filho – agora visto como um paladino da justiça e herói romântico improvisado – entrou na luta por fazer valer os desejos da mãe. Para usar uma palavra da moda, a “narrativa” nos leva a ficar do lado dele.

Uma coisa, entretanto, é inegável. O “último desejo” saiu de moda. Só os arcaicos respeitam. Os filhos do escritor colombiano Gabriel García Marquez ignoraram os derradeiros apelos paternos e mandaram pras livrarias o último romance do criador de Macondo. Em Agosto nos Vemos está vendendo bem pra caramba. Eu mesmo comprei e li, avidamente. Gostei, mesmo consciente que está demasiado longe de Cem Anos de Solidão e O Amor nos Tempos do Cólera. Desculpa, seu Gabriel.

No caso de Gal Costa, seus últimos desejos também ficaram esquecidos no churrasco. Principalmente no arrombamento de seus armários íntimos. Na era do outing, quando a saliência alheia vira tema de debate entre quem nunca sequer viu os personagens de perto, manter a vida sexual longe das comadres é um gesto revolucionário. É um sonoro e maiúsculo Não ao tsunami da fofocaiada.

Era – ou seria – um direito inalienável da cantora baiana proteger sua vida pessoal. A geração habituada ao exibicionismo extremo deve achar muito bizarro alguém que se recusa a dizer com quem dorme ou fica acordado. Pelo que nos revelam as notícias, Gal resguardava-se até do filho. Mas parece que ninguém mais liga pra essas besteiras.

Traz a patota

Deve acontecer o mesmo com vocês. Quando encontro meus amigos, erguemos brindes, fazemos agrados, combinamos viagens, batemos boca e comemoramos as pazes. É quase sempre assim. Minha tribo de queridíssimos é ativa, operante e, principalmente, do bem. Fazemos festas recíprocas, choramos pitangas em comum e – no ramo paulistano – sempre inventamos uma desculpa pra ter o pudim de queijo da Silvana na mesa. É sempre bom deixar claro que o quesito “Minha Patota” não é casa da Mãe Joana. É clube com entrada restrita.

Por isso, não consigo imaginar um encontro em que, irritado com alguém, um de nós comente: “Preciso me livrar de Fulano (o irritante, que não faz parte da patota)”. Logo, um amigo solerte e prestativo encontrará na lista de contatos do celular um matador que é tiro e queda – infame, eu sei, mas deixa quieto. Acredito (ou torço para) que a maior parte dos meus amigos demoraria algum tempo até encontrar o nome de um capanga.

Eu mesmo não tenho ninguém pra recomendar. A indicação mais fora da casinha que já dei foi o telefone de um urologista, com a seguinte frase: “Ele é rápido no exame e é corintiano”. Tenho amigas muito queridas e cariocas que adoram trocar telefones de astrólogas. Repare que médicos e astrólogas são profissionais que, em tudo correndo bem, não colocam ninguém na cadeia.

Matador, não. Matador é complicado. Como explicar aquele nome na sua agenda? “Ele mora no mesmo condomínio do Beltrano, que costuma dar emprego e medalha de honra ao mérito para milicianos” é uma desculpa. Esfarrapada, ok. Mas dizer “Liga pra ele e diz que fui eu que indiquei” soa muito mais bizarro.

Não deve ser fácil ter amigo bandido. Amor bandido ainda rende uns fetiches e muitas doses de adrenalina. Amigo bandido só traz constrangimento. Por exemplo: você não ficaria à vontade em carregar o sujeito a tiracolo no churrasco com a turma da firma. E se sair discussão sobre futebol? O cara anda armado e pode se enfezar. Vai dar ruim.

O primeiro amigo bandido abre a porteira para um novo universo. Você se cercará de mais amigos bandidos. Colegas bandidos. Conhecidos. Enfim, todas as hierarquias da quadrilha. Só assim ninguém estranha muito que a mãe, a irmã e uma tia de criação do miliciano trabalhem no seu gabinete. Aliás, a bem da verdade, nem trabalham. Só recebem mesmo. Acaba virando tudo uma cadeia – de novo, sem trocadilhos.

É muito comum isso em inúmeras categorias profissionais. Médicos namoram médicas (ou médicos). Jornalistas, idem. Artistas namoram, casam, traem, separam e reatam com artistas. Tem muito a ver com o fato de se passar muitas horas do dia na companhia daqueles colegas. Um café, um papinho bobo, um olhar aqui, uma mãozinha esquecida ali, um encontro num corredor escuro… Quem nunca?

Podemos também chamar de irmandade, confraria, patota ou curriola. Conviver com militantes do mesmo sindicato explica por que cada bomba que estoura nos altos círculos políticos puxa uma fieira de atiradores, estelionatários, punguistas, matadores e salafrários fantasiados de religiosos. Nossos poderosos têm dedo podre pra amigos. Quem sai aos seus não degenera, já diziam as vovós. Boi preto conhece boi preto, escreveu no velho Twitter o novelista Aguinaldo Silva, sabedor do que falava.

No noticiário político-policial dos últimos anos, as fronteiras do ilegal e do imoral cruzam-se perigosamente. Nessa hora, você dá graças aos céus por ter amigos em que ninguém (até segunda ordem) mata ninguém. Você pode até perguntar: é proibido ter amigo matador? Não. Mas é esquisito, convenhamos. Tão esquisito quanto passar duas noites numa embaixada a poucos quilômetros de sua casa. E ainda tem a limitação de assuntos: você não poderá jamais perguntar como vai o trabalho do seu amiguinho matador. Se ele contar, você morre. É a tal “queima de arquivo”.

Tá quente, tá frio

Em São Paulo foi assim: na terça-feira, estava todo mundo emplastrado de suor, sem conseguir dormir direito, com medo de sair à rua e ser fulminado por um raio solar perdido. Dois dias depois, foi um tal de revirar os armários, tirar blusas e casacos e voltar a dormir de conchinha com um fofíssimo edredon. O diacho é convencer nosso corpo a aceitar mudanças tão súbitas.

Graças à friaca, eu, que dificilmente serei lembrado por minhas habilidades manuais, ganhei oito braços, cinco pernas, seis lombares doloridas e uma coreô que faria o Mister Bean parecer o Fred Astaire. Não dava dois passos sem quase engolir o boné ou tropeçar na calça comprida. Nada dava certo. Acho que com muita gente foi parecido. Há meses que nosso uniforme de vida e trabalho era uma bermuda e uma camiseta.

Em casa, eu trocava a bermuda por um desses calções que, em caso de incêndio no prédio, é melhor acabar torrado do que ser visto naqueles andrajos. Quando tinha algum compromisso externo, usava o que eu chamo de bermuda social – uma de jeans, puro suco de elegância. Era o mais próximo de um traje de gala que a temperatura permitia.

É curioso como a nossa relação com as baixas temperaturas pode ir além do conforto térmico. Existe algo de europeu no sair de casa usando casacão, cachecol e, dependendo, botinhas forradas de pelo animal. Tudo sob uma delicada neve imaginária que cai ao nosso redor. Moda inverno costumava ser um exemplo de elegância. Mas aí adotamos o estilo cebola e foi tudo ladeira abaixo.

Verão, não. Verão é corpo de fora, ombros à mostra, coxas expostas, barriguinha nem sempre “inha”, mas suada de calor e luxúria. Verão é uma coisa tropical demais pro nosso DNA de Hemisfério Norte. Parodiando Rita Lee e Arnaldo Jabor, inverno é amor à beira da lareira e com a taça de um bom tinto na mão. Verão é um caso passageiro, fugaz, suado, rapidão. “Amor de verão”, entenderam?

Embora tenha sido recebida com faixas, aplausos e título de cidadã honorária, a frente fria nos obrigou a reaprender muitas coisas. Empunhar o guarda-chuva, por exemplo. No metrô, uma mulher à minha frente carregava o seu – dos grandes – na horizontal. Conforme ela balançava o braço, o guarda-chuva virava uma arma perigosíssima para as partes baixas de quem vinha atrás. Dei um toque e ela, pra minha surpresa, riu bastante, reconheceu o perigo e corrigiu a postura. São Paulo tem mesmo de tudo, até gente educada.

Outra coisa de que o figurino mínimo nos livrava eram os bolsos. Você tinha, no máximo, dois bolsos e eles precisavam dar conta de documento, carteira, celular e headphone (ou fone de ouvido, para os mais arcaicos). No frio, é bolso nas calças, no casaco, na camisa… E é evidente que a pessoa sempre esquece onde guardou a chave de casa, especialmente se estiver chegando da rua com vontade de fazer um xixi bacaninha.

O primeiro dia de mudança climática serve também para denunciar quem desconfia do serviço meteorológico. Ventava e fazia frio. Mesmo assim, muitos usavam bermudas e camisetas tranquilamente, como se aquele frio fosse coisa da nossa cabeça. Eram uma espécie de antifrix, os priminhos dos antivax.

Não vi ninguém reclamando do clima em São Paulo. Até por que, em vários outros cantos do país, a coisa foi trágica. Aqui, só precisamos rever o guarda-roupa. No segundo dia, alertados pela chuva, alguns paulistanos desfilavam de cachecol, gorro de lã e até botas. Não era pra tanto, mas o desacerto faz parte do pacote. Chato mesmo é o cheiro de naftalina que alguns modelitos exalam…

O New Luka do Tarcísio

Quando soltou um “tô nem aí” pra quem o acusava de estimular o morticínio praticado pela Polícia Militar na Baixada Santista, o governador paulista Tarcísio de Freitas transformou-se na versão rechonchuda da cantora gaúcha Luka. Pra quem não sabe ou não lembra, a artista graciosa fez o maior sucesso no distante ano de 2003, com a música Tô nem aí. Mais de vinte anos depois, Luka trocou a carreira por uma vida familiar nos Estados Unidos e abriu caminho pro brucutu Freitas repetir seu bordão.

Tarcísio deixou claro que não vê problema algum em seus soldados executarem uma pessoa a cada 19 horas na Baixada. A justificativa: é tudo bandido. O adjetivo, por si só, explicaria o bangue-bangue. Não surpreendeu ninguém a postura do governador, eleito provavelmente por isso mesmo. Em acachapante maioria, o time de quem digitou seu número nas urnas eletrônicas usaria uma camiseta com a frase “Bandido bom é bandido morto”. É a instituição da pena de morte, apoiada pelos apedrejadores de quem faz aborto, porque “não se pode eliminar uma vida criada por Deus”.

Quando faz vista grossa à chacina da PM na Baixada, o autointitulado cidadão de bem traveste-se de personagem do filme Zona de Interesse, dirigido por Jonathan Glazer e vencedor do Oscar de filme internacional, além de Cannes e outros festivais – todos prêmios justíssimos. Na obra, a família do diretor do campo de concentração de Auschwitz vive confortavelmente, compartilhando o muro com o local da morte de 6 mil pessoas por dia, entre judeus e outros inimigos do nazismo.

Não é que eles não soubessem da vizinhança incômoda. Sabiam, sim. Herdavam, inclusive, casacos de pele, joias e lingeries das vítimas, como se fosse a partilha dos bens da tia-avó Gerta. Em determinado momento do filme, a cena salta dos anos 40 para os dias atuais, quando funcionários de um museu do holocausto limpam as instalações do prédio para um novo dia de visitas – tendo ali, encostados às vidraças, os pertences de incontáveis vítimas. É como se o filme nos alertasse: a frieza continua.

Quem apoia ou, no mínimo, não vê nada demais no governador do maior estado do Brasil fazer pouco do espanto com o morticínio provocado por seus policiais, age como os personagens do filme Zona de Interesse. A mensagem é inequívoca: “aquilo não nos afeta”. Não deixa de ser verdade: o que significa para um cidadão de Botucatu ou um morador de Moema o fato de terem morrido 45 pretos favelados?

O que mais choca é perceber que o apoio ao governador cresce a cada tiro disparado pela PM paulista contra a população que vive do outro lado do muro. Os vocábulos preto, pobre e favelado se tornaram sinônimos de bandido nesse dicionário de crueldade social. O governador não dá o menor sinal de que pretende recuar da política de extermínio. Pelo contrário, o pé está firme no acelerador.

O freio de mão só será puxado quando uma dessas balas, por tremendo golpe de azar, ferir de morte algum garoto classe média, branco, loirinho, criado a leite Ninho e férias na Disney. Pode ser que a vítima estivesse na quebrada para comprar um baseado ou um papelote, vai saber.  Mas a PM agora violenta não terá o direito de eliminar assim a “nossa juventude”.

Molícia cívica

Você leu “molícia”, sim. E não está errado. Molícia é um dos sinônimos possíveis para “preguiça”- ao lado de inação, fleuma, morosidade e ócio. Escolhi molícia porque achei o som da palavra engraçadinho. Vamos à crônica.

Sei que é até feio escrever um negócio desses, mas confesso que só de pensar na campanha política que se avizinha já me bate aquela vontade de fugir pra uma ilha deserta – com wi-fi, um hotel confortável e um barman que conheça todos os segredos de uma boa caipirosca.

Sei também que, na reta final da campanha, estarei engajadíssimo com meu candidato (de esquerda, claro) e elencando uma lista de vereadores que, se eleitos, farão boa figura. No momento, o estado de espírito é de legítima preguiça.

Prefeito, todo mundo sabe, é um zelador bem pago e com chofer bancado por eleitores de todos os partidos. Se ele (ou ela) fizer bem o seu trabalho, o cidadão toma ônibus confortáveis, trafega por ruas limpas, com jardins bem cuidados, e volta para casa, no fim do dia, com a sensação de estar relativamente livre dos perigos. Parece pouco, mas não é. Aliás, deve ser bem difícil, a julgar pelos resultados.

Acontece que, realizada no meio do mandato de governadores e presidentes, a eleição de um prefeito serve de termômetro para variadas temperaturas. A principal é tentar detectar a quantas anda o humor dos eleitores. E é aí que, como diriam os antigos, a porca torce o rabo (nunca conheci um antigo que, realmente, dissesse isso, mas fica o dito pelo não dito).

Exceto por países de índole ditatorial (como a Venezuela e o México) e estados brasileiros (como o antigo Tucanistão paulista implodido por João Dória), os partidos se alternam no comando da aeronave. Muitas vezes, isso demorava a acontecer, mas acontecia. Na era dos tik tokers, os eleitores jogam escravos de jó com os candidatos – tira, põe, deixa ficar…

Tinha começado a rascunhar essa crônica quando dormi e sonhei, vejam só, que havia sido eleito pra prefeiturar São Paulo. No material de campanha, fotos minhas ao lado de Luiza Erundina, Eduardo Suplicy, Guilherme Boulos e Lula, claro – gente, que antiquário! Tudo sonho mesmo, nunca tive foto com nenhum dos citados. Mas sonho é sonho. Meu dilema era formar o secretariado – alguns amigos, a quem contei o sonho, se ofereceram pro sacrifício de manejar um carguinho. Freudiano ou não, o sonho quase me fez desistir do tema de hoje. Perseverei.

Não dá pra alimentar indolência quando o outro lado (vocês sabem quem) está ativo e operante. Não apenas exercendo seu inalienável direito de opinar, mas abusando da ingenuidade esquerdista do “tudo resolvido, vencemos”. Não, meu bem, vencemos uma batalha e, vamos combinar, no sufoco. O outro lado não dorme, joga pesado e sujo. Passa anos alimentando mágoas e revanchismos golpistas. Atacando por flancos quase esquecidos.

Nos últimos dias, por exemplo, cismaram de perseguir o romance O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório. Lançado em 2020, quase foi ofuscado pelo tsunami Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior, mas resistiu e, aos poucos, cresceu no gosto do público. É um romance muito bem escrito. A história de Pedro, que busca explicações para a morte do pai, negro assassinado durante uma blitz policial em Porto Alegre, ganhou o Jabuti 2021 e entrou na lista de livros indicados em várias escolas. Aí começou a ziquizira.

Professores gaúchos e paranaenses – até agora – se mostraram ofendidos com a linguagem usada pelo escritor. Violenta? Sim. Mentirosa? Não. Para esses mestres na arte da censura, nossa juventude está apta a ouvir letras pesadas de funk rebolando até o chão, mas pode se trincar ao ler uma cena de racismo.

Deixa eu explicar uma coisa: não dá pra escrever uma cena de racismo de maneira gentil. Assim como não se pode produzir um texto sobre estupro como se fosse o primeiro encontro de Romeu e Julieta. A violência está no ato e não na descrição. Essa campanha persecutória é a perpétua luta obscurantista de quem começou negando a redondice da Terra e hoje ainda é contra vacina. (Por favor, amigos de esquerda, não venham dizer que “agora, sim, com a censura o livro vai fazer sucesso”. Não, meus anjos, censura é trágica e inaceitável, ponto).

Voltando ao meu sonho, será que adianta ser prefeito libertário em meio a uma mentalidade medieval? Às vezes sim, às vezes não. O fato é que espanei a preguiça, vesti minha camiseta vermelha e saí por aí. Como se dizia nas passeatas dos anos 1980, a luta continua. Em 2024, é melhor dizer que a luta não para.

Assim se passaram 39 anos…

Na hora que embarquei em Guarulhos, eu jurava que minha primeira e única vez em Aracaju tinha sido há exatos 40 anos. Exagerei. Foram 39, mas ninguém vai brigar por um detalhe aritmético. A única lembrança que ficou foram as areias salpicadas de óleo cru – as plataformas de petróleo ficavam quase ao alcance das mãos, na Praia de Atalaia. O óleo detonava as havaianas e grudava na sola dos pés, nem Cristo limpava.

Entre a primeira e a segunda visita a Aracaju, deu tempo de visitar várias vezes todas as capitais nordestinas, exceto a de Sergipe (a do Piauí, também). Este ano, conferidas as milhas acumuladas, achei que poderia dar uma segunda chance a Aracaju. Sábia decisão. Não apenas por ver como a cidade mudara pra melhor, mas também como o mesmo turista também mudara (o “pra melhor” fica por conta da sua generosidade). Nem viajante nem destino ficaram parados no tempo. Foi a primeira boa impressão.

Da primeira vez que estive aqui (sim, escrevo ainda de Aracaju), vim na companhia da até hoje amigona Sueli Godoy, que certamente há de lembrar de mais coisas. Éramos jovens e modestamente pagos repórteres da Folha. Tínhamos ainda um espírito de estudante, ou seja, viajávamos na pindaíba. Pra que subir de São Paulo até Maceió de avião, se os ônibus eram bem mais baratos? Demorava mais, é verdade, mas nessa época a gente tirava férias de 30 dias. E a lombar nem existia.

Foi uma turnê de várias paradas – Ilhéus, Aracaju, Maceió e, voltando, Salvador. Tudo a bordo de ônibus nem sempre estalando de novos. Fizemos amizades, Sueli mudou o rumo de sua vida (sem exagero) e eu conquistei o quarto lugar no torneio de xadrez promovido no Sesc Aracaju, onde nos hospedamos. Eram quatro jogadores, mas o importante é competir, certo?

Nesta volta do parafuso, vim de avião – é bem mais confortável, especialmente no vôo direto de apenas duas horas e meia. Lembrava quase nada da cidade, mas a que se apresentou desta vez era muito agradável. Acolhedora e limpíssima, também. E com um museu imperdível, o da Gente Sergipana. Com recursos de interatividade, o museu reconstrói os diversos hábitats do estado, explica a culinária regional e coloca sergipanos ilustres para contar eles mesmos suas biografias. Ainda rola no final um restaurante bem bacana e com preços razoáveis. Programão.

Houve alguma mudança topográfica forte, que eu ainda não entedi direito, mas que empurrou a praia para mais longe da avenida beira-mar. Agora sem o óleo cru das refinarias, a praia de Atalaia não suja nossos pés – mas também não seduz nossos olhos. Dá pra ficar numa das barracas, tomando água de coco, cerveja ou caipirinha, comendo peixinho frito ou martelando caranguejo. Num misto de preguiça e frescura, prefiro a versão casquinha, sem a necessidade selvagem de ficar esmigalhado o pobre do crustáceo.

Nem tudo é praia. Há lugares preservados, como a deliciosa São Cristóvão, capital da província até 1855, uma pequena jóia do período colonial. Seu museu de arte sacra – um dos melhores do Brasil – merece visita combinada com o Mosteiro de São Francisco. Ateliês de gravuristas e doçarias regionais dão o tempero.

A tecnologia dos museus não foi a única mudança de que me dei conta. Eu também era outro. Ainda bem. Que apavorante seria manter a mesma empáfia dos 25 anos quase quatro décadas depois. Apavorante e ridículo. Também conta o aprendizado de turista ao longo de tantos anos. E a própria evolução do mercado.

Aracaju (e por tabela, o Sergipe) perdeu o pudor de disputar espaço com primas mais bem servidas de atrações, como Maceió e Salvador. Ela é mais simples? É. Mas não é mais borocoxô que as parentas exibidas. Foi só abrir os olhos e esquecer o preconceito no banco do Uber que me levou a Cumbica. Não fez a menor falta. Agora, só me falta comprar um boné novo. Vou em busca de um mais colorido. Os meus são escuros demais. Não ornam com o ambiente ensolarado.

O ritmo da chuva

Quem cresceu nas barrancas do Córrego da Paciência, aprazível veio aquático que ligava a zona norte de São Paulo a Guarulhos, aprendia cedo que chuva forte era prenúncio de inundação. A releitura fantasiosa da realidade fazia a criançada vibrar a cada enchente, imaginando braçadas heroicas. Durante anos, alimentei a mágoa de ser proibido por minha mãe de mergulhar na correnteza, junto com os demais moleques. Talvez por isso eu nunca tenha aprendido a nadar direito. Em compensação, nunca fui vitimado pela leptospirose.

As enchentes da minha infância me ensinaram a achar muito esquisito quem adorava andar sob a chuva. A água caindo firme e a pessoa lá, se portando como se colhesse flores delicadas num jardim ensolarado. Talvez por isso, a cena mais impactante de ficção científica pra mim não está em 2001, Uma Odisséia no Espaç0, de Stanley Kubrick, mas em Cantando na Chuva, co-dirigido por Stanley Donan em 1952. Flutuar no espaço sideral é bico. A euforia até hoje contagiante de Gene Kelly sob o toró não é natural. Só mesmo estando apaixonado (e ser correspondido), como o personagem.

Como quase diria o poeta Fernando Pessoa, nunca conheci quem não esgotasse um container de palavrões ao ser surpreendido pelo aguaceiro. Na aurora da vida, vá lá, ainda persiste um certo romantismo. Mas décadas depois de serviços prestados à existência, a gente toma chuva e inevitavelmente pensa no pior. Eu, pelo menos, sou desses. Outro dia, uma garoinha modesta não me desanimou de caminhar três quadras até um cinema – com guarda-chuva, claro.

A garoinha ganhou força, virou chuva adulta e eu me vi numa rua sem beiral, loja, banca, nada que protegesse. Resumindo a ópera, acordei no dia seguinte certo de ter pego pneumonia. O racional que mora em mim recomendou um chá, um comprimido de dipirona – e lembrou que, sim, eu sou vacinado contra pneumonia. Mas quem escuta um racional quando hospeda na alma um capeta alarmista hipocondríaco?

Esse tipo de pensamento em torno da água que cai me veio quando eu olhava pela janela do ônibus em meio ao trânsito parado num começo de noite. Chovia, é claro. Não é possível que os apaixonados por chuva insistam em tal anomalia sentimental nos tempos atuais. Se antes o pé d’água significava enchente à vista, hoje em dia chuva é sinônimo de árvores caídas, iluminação cortada e sinais de trânsito descontrolados – sem falar nas enchentes agora guarnecidas de deslizamentos e morte. A tecnologia avançou tanto, atingiu tais níveis de delicadeza e precisão, que não resiste a uma trovoada básica.

Definitivamente, chuva inspira, com limites. O dramaturgo Carlos Queiroz Telles escreveu um romance chamado Os Amantes da Chuva, sobre um casal que se apaixonava num ponto de ônibus e provocava catástrofes climáticas – tipo, os pais dos irmãos El Niño e La Niña. Não encontrei o ano de lançamento do romance, mas em compensação, lembrei de ter assistido, em 1979, o filme Os Amantes da Chuva, estrelado por Bete Mendes e Helber Rangel e dirigido por Roberto Santos. Um casal provocava intempéries quando se encontrava e, ao descobrir isso, um repórter transforma a vida dos dois num inferno midiático.

Na época do lançamento, eu era fã da Bete Mendes e não fazia ideia da importância do diretor Roberto Santos, nome à frente de grandes obras, como A Hora e a Vez de Augusto Matraga e O Grande Momento. Isso não impediu que eu tenha achado o filme meio borocoxô. Mas não levem a opinião a sério. Eu precisaria rever o trabalho.

Imutável mesmo foi e é minha opinião sobre Chuva, uma peça de teatro montada no final dos anos 1970, com Raul Cortez e Consuelo Leandro nos papéis principais. Consuelo era comediante famosa, atirada no papel dramático da prostituta que seduz e enlouquece um pastor religioso. Não rolou. Dizem que Cortez dava verdadeiros pitis nos camarins. O que ficou na memória foi a chuva torrencial que caía no palco do Teatro Anchieta, molhando de verdade o pessoal da primeira fila. Eu assisti – lá da G.

Turista orgânico

Sou viciado em viajar. Doente mesmo.  Não posso receber um e-mail de companhia aérea ou agência de turismo que já me vejo passeando por lugares tentadores. E em “tentador” eu incluo qualquer lugar. Encontro prazer sincero em bater perna em mercados típicos, entrar em museu dedicado ao azulejo, pedir cerveja em idioma não cristão e fazer mímica para pedir algum prato específico – como o pato assado que exigiu um certo despudor ao imitar o quén-quén da ave em pleno restaurante lotado, no interior da Áustria. Deu certo.

Sou capaz de ficar olhando feito besta pros prédios mais desconhecidos. Na primeira vez que estive em Bruxelas, na Bélgica – entre os séculos 18 e 19, acho – tinha ganho um guia mimeografado (não sabe o que é, pergunte pra vovó), que descrevia a praça central da cidade prédio por prédio. Pra esclarecer, a Grand Place é disparado a atração mais bacana da capital belga. Não por acaso, o escritor Victor Hugo – autor dos Miseráveis – definiu-a como a praça mais bonita do mundo (e ele morava na inacreditável Place des Vosges, em Paris!). Acredite, dá pra ficar um tempão parado, olhando fachada por fachada de edifícios construídos pouco depois de 1600. Depois, pra se recuperar do esforço, você se senta num dos restaurantes das imediações e se entope de mariscos cozidos, batata frita e vinho branco.

Viciados em expandir fronteiras não se deixam abater por vôos longuíssimos, aeroportos lotados e chuva no destino final – desde que passe logo, é claro. Falando em nome da coletividade, gostamos de conforto, mas não somos loucos em dispensar carona numa caminhonete cheia de trabalhadores rurais no interior do Maranhão. Pode acontecer e é bom sempre estar preparado, fazendo a mesma cara de “nasci pra isso” que se faz ao ganhar assento na primeira classe de um avião. A primeira classe, comigo, nunca rolou, mas a carinha de habituê está pronta pra tudo.

Viagens sempre reservam momentos especiais. Não só pelo exotismo, mas pela quase banalidade de tantas belezas. Você pode saborear um café da manhã inesquecível à beira do Rio Mekong, em Luang Prabang, no Laos, ou numa pousada com vista para a Serra da Mantiqueira, em Santo Antônio do Pinhal. Há prazer em chupar um caju colhido no pé, no Ceará, ou mordiscar uma azeitona arrancada da oliveira na Espanha – mentira, azeitona in natura é um dos piores sabores que a natureza oferece aos curiosos. Mas, como diria Vinicius de Moraes, se não viajar, como sabê-lo?

Há dois anos, quando amargava uma internação compulsória por causa de Covid, gostava de assistir aos programas de turismo que havia na TV. Meu preferido era Pedro pelo Mundo, que o jornalista Pedro Andrade apresentava na GNT. Lembro em especial de um programa sobre o Arquipélago de Malta, onde eu nunca tinha pensado em botar os pés. Não sei se foram os medicamentos fortes, a longa temporada na UTI ou o puro vício de viajante, mas achei que, sim, sairia do hospital direto pra Cumbica, onde tomaria um vôo para Valeta, capital de Malta.

Saí do hospital, ufa, mas ainda não cumpri meu projeto. De vez em quando, como bom adicto, alimento o vício e batuco no Google em busca de informações. Descobri que Malta – localizada no Mediterrâneo, entre a Sicília e a costa norte da África – tem uma ilha chamada Gozo.

Piadas infames à parte, como não sonhar em passar férias nadando nas praias de Gozo? É como tomar o bonde chamado Desejo, em New Orleans, ou o Prazeres, em Lisboa. São destinos que nos atiçam.

Na prazerosa Gozo, você pode visitar a Caverna Calypso – onde, Deus nos defenda, ninguém bate cabelo e canta Vou tomar um tacacá…  Não riam. Em 2014, refestelado ao sol da ilha de Mykonos, na Grécia, escutei Valeska Popuzuda cantando Beijinho no Ombro. E eu nem sabia a coreô. Nunca me recuperei do vexame.