No começo dos anos 1980, estreou no Brasil com atraso (a produção é de 1976), o filme Feios, Sujos e Malvados, do italiano Ettore Scola, premiado como melhor diretor no Festival de Cannes. A história da família Mazzatella envolve um prêmio de loteria escondido pelo patriarca Giacinto, que todos da turma querem roubar. A família imensa vive numa favela em Roma, com uma atordoante vista do Vaticano, e só consegue uns trocados quando leva a avó cadeirante ao banco para receber a aposentadoria minguada. Trabalhar, ninguém quer. A comédia fez o maior sucesso, ninguém imaginava tocar a vida naquela toada. E não é que, em 2024, aparece uma brasileirinha do bairro carioca de Bangu e coloca Ettore Scola no chinelo?
Érika, a cuidadora de Bangu, entra na história levando Tio Paulo ao banco para sacar um empréstimo de R$ 17 mil. Mal acomodado numa cadeira de rodas tomada de empréstimo num shopping, Tio Paulo já não sustentava a cabeça, não reagia quando o chamavam e nem conseguia segurar a caneta para assinar o contrato de empréstimo.
As duas bancárias que atenderam o idoso até acharam que ele estava com “uma corzinha estranha”, mas os médicos do Samu bateram o martelo: tio Paulo tinha partido desta pra melhor provavelmente antes de dar entrada no banco. A cuidadora foi logo presa, não por homicídio, mas por vilipêndio de cadáver. Traduzindo: não tratou o extinto com o devido respeito.
Depois de estrelar memes (alguns muito bons) e receber ataques de tudo quanto é lado, inclusive dentro da cela, Érika chegou rapidamente à categoria de provável injustiçada. Nas redes, sempre nelas, já apareceu quem visse no massacre virtual mais uma apressada manifestação de preconceito social e machismo. Pode ser. Mas que o caso é bizarro, isso ninguém duvida.
Nenhuma reportagem até agora conseguiu esclarecer quem é (ou foi) Paulo Roberto Braga, o agora popularmente conhecido Tio Paulo. Sabemos sua idade, 68 anos. E já vimos onde morava: um cafofo miserável sem janela nem reboco numa comunidade da zona oeste do Rio. As vizinhas forneciam refeições improvisadas e nenhuma disse conhecer a cuidadora. Tio Paulo não tinha móveis, exceto uma cama improvisada. O único objeto que decorava seu refúgio era um vaso sanitário que, pelo jeito, não servia para o que fora fabricado.
Tio Paulo morava sozinho. Tio Paulo morreu sozinho. Tio Paulo não teve quem providenciasse seu enterro, nem fosse reconhecer o corpo no IML ou reivindicar algum cacareco que pudesse ser chamado de herança. Não fossem os registros de internação numa UPA de Bangu, a carteira de identidade e o empréstimo de 17 mil concedido por uma instituição bancária – que, pelo jeito, levaria um calote máster -, Tio Paulo teria passado os 24 mil dias de sua vida nas mais brancas nuvens. Ninguém parece tê-lo amado. Nem mesmo odiado. Levou no caixão só uma cota de ensurdecedor desprezo.
A morte de Tio Paulo, diante de um contrato de empréstimo consignado, levantou a lebre em todos aqueles que vivem sozinhos, sem filho nem chamego. Por alguns instantes, todo um segmento da população tremeu nas bases. Cheguei mesmo a ler posts de amigos que pediam dicas de como evitar uma ida forçada ao banco depois de encerrada a longa existência no chamado vale de lágrimas.
Ainda bem que todo escândalo na Era do Tik Tok dura só uma semana. Amanhã ou depois termina o reinado de Tio Paulo, o defunto que virou celeb. Passado o vendaval, é capaz de Érika se tornar porta-voz de uma corrente religiosa radical na crença de que a morte – especialmente, a de velhos solitários – não é o fim de tudo. Sempre haverá um empréstimo para assinar.