Nunca fui santo

Desde o dia em que comprei passagem pra visitar Juazeiro do Norte, no Ceará, a pergunta que mais me fizeram foi: por quê? A resposta mais óbvia seria “Porque eu quero”, mas não soaria muito educado. Precisei pensar a respeito. Por que diabos eu… “diabos” não é a melhor palavra para falar de um destino religioso. Por que mesmo eu fiz tanta questão de conhecer a terra do Padim Ciço? Melhor assim.

Não há nada de cearense no meu DNA. Estou a anos-luz do título de católico praticante. E ainda acho que a melhor biografia do primeiro prefeito de Juazeiro do Norte foi feita pelo jornalista Lira Neto nas mais de 550 páginas de Padre Cícero. O livro nos apresenta um religioso que rezou missas, enfrentou cangaceiros, foi afastado das funções eclesiásticas, entrou pra política e chegou a deputado federal, sempre bom de briga. Meu olhar, portanto, nunca foi o de quem acreditava em milagres.

Mas minha mãe e todas as minhas tias acreditavam. Cresci ouvindo casos do Padim e de seu sucessor, Frei Damião. Acho que nem mesmo a ala da família que virou evangélica seria capaz de atacar o velho Cícero Romão Batista (1844-1934). A curiosidade de meus amigos permanecia sem resposta. A situação ficou mais engraçada quando a pergunta começou a ser feita também pelos moradores de Juazeiro do Norte. “O que você veio fazer aqui?” Eles achavam esquisito, de verdade.

Se houver uma instituição chamada Viajantes Anônimos, eu certamente posso integrar o grande conselho. Botar o pé na estrada é comigo mesmo. Amo conhecer o interior do Brasil, aquele distante das referências urbanas que marcam o ritmo paulista. Adoro o bit acelerado das grandes cidades, mas me delicio também em lugares pequenos. Por dois dias. No terceiro eu já procuro a viga onde amarrar o laço da forca. Mas conhecer outros cantos é um vício.

Mesmo sem me seduzir, a religiosidade exacerbada me intriga. No dia em que visitei a estátua do Padre Cícero, na Colina do Horto, em Juazeiro (subi de Uber e desci num teleférico moderno), testemunhei manifestações sinceras de adoração pelo Padim. No Museu Vivo, fiéis reverenciam imagens que mostram Cícero em diversas situações – levantando-se da rede, jantando com aliados políticos, dando hóstia às beatas que o seguiam. Os olhos dos fiéis brilham, as mãos querem tocar o santo – e você entende que o Vivo, no nome do museu, diz mais sobre como os fieis enxergam as coisas.

Na cidade – e na Chapada do Araripe, ao redor -, o Padre Cícero dá nome a tudo: avenida, praça, estacionamento, restaurante, oficina mecânica, emissora de rádio. Os municípios vizinhos, e menores, tentam escapar da sombra do padre e buscam outros motivos para atrair turistas. Santana do Cariri, por exemplo, tem um ótimo museu de paleontologia. Nova Olinda, outra cidade, além de um museu dedicado aos trabalhos de couro, mantido por Espedito Seleiro, abre aos visitantes um trabalho incrível com crianças da rede escolar. Mas tudo parece depender de uma bênção do Padim.

Talvez seja aí que a coisa enrosca. Em São Paulo, meus amigos me olhavam como se eu tivesse virado um papa-hóstia (eles não sabiam, mas vão saber agora, que eu só provei a hóstia uma única vez – e na Notre-Dame de Paris, tá?). Também em pleno Cariri, muitos moradores desconfiam de quem quer apenas visitar a cidade. O mesmo povo que deposita tanta crença nas costas de um padre ligado ao coronelismo não leva a menor fé nas belezas locais.

Foi preciso juntar minha curiosidade fanática ao auxílio profissional do guia Ernesto Rocha, que passou um dia me levando a lugares incríveis, como a Floresta Nacional do Araripe, criada em 1946, a Ponte de Pedra e aos artistas locais. Muitos, inclusive, aderiram a um projeto chamado Museu Orgânico, criando em casa exposições de suas atividades profissionais, como o Museu da Rede. Aliás, o próprio Rocha abriu em sua casa, no Crato, o Museu da Fotografia do Cariri. O acerto é feito com as imagens registradas por sua mãe, Telma Saraiva, desde os anos 1930 – ela foi uma pioneira da fotografia na região. Se quiser mais informações, acesse o Instagram @casadetelmasaraiva.

São figuras e histórias muito legais de se conhecer. O merecido sucesso do programa Avisa Lá que Eu Vou, do ator e humorista Paulo Vieira, é a prova: existe um Brasil cheio de atrativos. É só saber (ou querer) olhar.

Autor:

Dramaturgo, autor-roteirista de novelas, cronista, jornalista. Paulistano.

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