Mãos armadas

Fui assaltado pelo taxista na porta de casa há cerca de duas semanas. Ser vítima de assalto, hoje em dia, não é exatamente a notícia do século. Sei de gente que foi roubada por ladrões armados três vezes na mesma noite, praticamente em sequência. Meu caso foi mais simples: peguei um táxi à noite, trajeto curto, corrida de 15 reais. O motorista disse que não tinha troco pra minha nota de 20 reais e sugeriu que eu pagasse em cartão de débito. Puro, inocente e besta, aceitei.

Entre a porta do prédio  e a do apartamento, chegou o aviso do banco: débito de 3.015 reais! Não preciso nem dizer que entrei em casa com o coração saltando pela boca de tanta raiva. Como era táxi apanhado na rua, eu não sabia da placa, do nome do motorista, nada. Valorizei como nunca os ubers e 99s da vida.

Depois de várias tentativas frustradas, consegui falar com o atendimento do banco. A conta já tinha sido bloqueada pela própria instituição, que considerou o gasto um tanto exótico e parou de encontrar meus dados no sistema. Por mais verniz que tenha acumulado na vida, continuo sem cara de quem gasta 3.015 reais numa noitada.

Finalmente, uma voz humana me atendeu. Expliquei. Caí no velho golpe da amarelinha, a máquina que alguns entregadores de comida usam para tirar uma gorjeta extra do cliente. Eu sabia desse golpe, mas ignorava que motoristas de táxi tinham aderido. Bloqueei tudo, tomei um chá e fui dormir.

No dia seguinte, tive de ir agência do banco. Troquei todas as senhas e entrei com pedido de ressarcimento. Ao contrário dos capetas de plantão, o dinheiro que saiu da minha conta me pertencia. Para minha surpresa (confesso), o banco concordou. Em alguns dias, tive a grana de volta – condicionada a ser novamente retirada, caso a segurança do banco considerasse o destinatário uma entidade honesta e acima de qualquer suspeita. Vai ser difícil a tal Larissa, nome que aparece no recibo do cartão, provar que o táxi é idôneo.

Uma coisa dessas na vida de um sujeito trabalhador e honesto é um evento bastante incômodo. A gente fica feito o John Travolta naquele meme, perdido de dar pena. Pensei nas armadilhas que nos espreitam a cada esquina. Já não está fácil pilotar máscara, trabalho, saúde, encontros, desencontros, saudades, tudo isso que agora faz parte da rotina. Ainda tem que estar atento e forte, como na canção tropicalista, e acordar com permanente disposição de matar um leão pilantra por dia.

E o que não nos falta pelo caminho é safardana, em qualquer esfera. Tem sempre alguém disposto a ser mais esperto. Do zé ruela que agasalha o troco até o mandatário que loteia o governo como se fosse a birosca da quebrada, somos vistos 24 horas por dia como idiotas potencialmente inofensivos. Fala sério, é cansativo manter esse estado de perpétua vigilância.

Pedacinhos de papel

No Houaiss, miscelânea pode ser definido como “um conjunto confuso de coisas diferentes”. Pra mim, miscelânea será eternamente o nome de um álbum de figurinhas que ganhei quando tinha 7 anos. O álbum virou poeira, mas ficou o fascínio da palavra. “Miscelânea” tem uma sonoridade única, as letras se juntam e bailam na boca. Experimente: mis-ce-lâ-ne-a!

O álbum do meu passado era uma coleção deliciosa da chamada cultura geral, indo de animais do fundo do mar a capitais do mundo de então, passando por cantores de quem eu nunca tinha ouvido falar – Elza Laranjeira, por exemplo, estava totalmente fora do circuito em 1967, mas mereceu uma foto no álbum. Foto bem ruim, por sinal.

Naqueles tempos, quando tudo na vida era só mato, não existia a moleza da figurinha autoadesiva. Tínhamos de colar foto a foto. Os mais durangos – peguemos, por exemplo, eu – aprendiam a fazer um grude com água e farinha de trigo. Era esquisito, mas colava mesmo – e deixava cada página bastante pesada.

Havia uma família na minha rua, na zona norte profunda de São Paulo, que se desdobrava pra equilibrar o orçamento no fim do mês. O pai era pedreiro, os cinco filhos eram pequenos e dona Bela, a mãe, era a tradicional “do lar”. Dona Bela sempre encontrava um jeito de descolar um troco a mais. Para minha alegria inenarrável, durante uma época ela conseguiu um bico de empacotadora de figurinhas.

Foi a primeira vez que entendi os saquinhos de figurinhas como um produto manipulado antes de chegar às minhas mãos. Quem diria? Alguém colocava os três pedacinhos de papel em cada embalagem! Genial. 

A coisa funcionava assim. Um carro despejava uma montanha de figurinhas na sala e dona Bela reunia os filhos para empacotar as danadas. Não perdi tempo e me ofereci de voluntário. Logo percebi que não seria um empacotador comum. Eu era uma espécie de ourives da figurinha.

Depois de me familiarizar com o sistema de trabalho, entrei no campo dos requintes. Eu não era um trabalhador mecânico, de jeito nenhum! Escolhia as figurinhas que iam em cada envelope! Separava as carimbadas – aquelas que, uma vez encontradas, ajudavam o colecionador a ganhar um prêmio – para colocar em saquinhos abençoados pela sorte.

Num dia de espírito de porco, coloquei duas figurinhas repetidas no mesmo envelope. Mas juro que foi só uma vez. Se você que me lê foi o infeliz comprador do pacotinho, me perdoe. Em outra ocasião, tocado pelo Espírito Santo, coloquei três carimbadas no mesmo saquinho. Até hoje, imagino a surpresa feliz de quem as encontrou. Se foi você, não precisa agradecer.

Não preciso estender muito a ópera: minha carreira de empacotador de figurinhas não durou. Dona Bela, sacando minha lerdeza crônica, logo deu um jeito de me dispensar – com delicadeza, pois ela era uma fofa.

Retornei às páginas do melhor álbum de figurinhas que conheci em toda minha vida – até então. Era um caderno que trazia em maravilhosas fotos coloridas as cenas mais legais do filme El Cid, estrelado por Charlton Heston e Sophia Loren. Na flor dos meus 7 anos, eu não fazia ideia de quem fossem Charlton e Sophia, mas fiquei vidrado no álbum.

Foi a primeira vez que o ácido da inveja invadiu meu coração. El Cid, o álbum, pertencia a meus primos Carlos e Celso, que moravam na Vila Medeiros – pertíssimo de onde hoje brilha o restaurante Mocotó (a irmã deles, Vera, era muito nova, nem deve lembrar). Como as famílias se frequentassem com assiduidade, logo que chegava lá eu corria ao armário ou à estante onde ficavam livros e cadernos. El Cid estava lá, quase que à minha espera.

Com os anos, o álbum foi se desmilinguindo. Perdeu a capa, algumas fotos, descambou. E eu adolesci sem vontade de ficar visitando tios e tias. Curioso é que, adulto, nunca vi o filme. Dirigido por Anthony Mann e lançado em 1961, ele dura mais de três horas, o que deve ter contribuído pra minha preguiça. 

Atiçado pela vontade de escrever a respeito dele, fui atrás de informações sobre o álbum. Foi lançado por aqui em 1965 e até hoje não consigo entender como um exemplar chegou à Vila Medeiros, na casa de uma família que não tinha no cinema sua principal fonte de distração. A pesquisa me ajudou a descobrir que El Cid, o álbum, tem muitos fãs. A ponto de estar cotado no Mercado Livre a 500 reais. Foi curioso ver o passado assim, devidamente valorizado.

Enquanto escrevia, tentei entender quais labirintos percorri para chegar nessa inusitada sessão nostalgia. Há muitas décadas, colecionar figurinhas não é meu hobby. Então, por que o guerreiro castelhano Rodrigo Diaz de Vivar, El Cid, passou a mão na Miscelânea e voltou à minha lembrança? Creio que o gatilho foi o susto que levei com a Covid e que pessoas muito queridas têm passado com outras doenças. O álbum não está completo, longe disso. Ainda restam muitas páginas pra colar figurinhas nesta vida.

Este seu olhar…

As máscaras começaram a cair, festejaram os salientes. Lá vem a temporada dos feios, lamentaram os pessimistas. Eu é que não paro de usar a minha, alertaram os desconfiados. Resumo da ópera: por quase todo o país, ninguém ficou insensível aos decretos que suspenderam a obrigatoriedade do uso de máscaras em locais abertos. Conforme a cidade, ficou praticamente proibido cobrir o rosto.

O problema agora é outro. O corpo precisa de um tempo para se adaptar às bruscas mudanças de temperatura, que transformam termômetros numa gangorra prejudicial à saúde. Com o cérebro acontece a mesma coisa. Lembra dos primeiros meses de pandemia, quando você era abordado na rua por um desconhecido de olhos brilhantes, que te chamava pelo apelido de infância? Fiz muita cara de assustado para amigas que abandonaram o hábito de tingir cabelos e circulavam libertas de todas as henas. 

Um dia fui reconhecido no ônibus por um rapaz, obviamente mascarado. Ele se mostrava muito feliz em me encontrar e eu procurava um modo minimamente elegante de demonstrar que não fazia ideia de quem se tratava. Não teve jeito: “Baixa a máscara um instante, por favor”. Ele riu, fez o que eu pedi, eu mandei um entusiasmado “ah, é você!” e saltei do ônibus na parada seguinte, sem fazer a menor ideia de quem se tratava.

Me aconteceu também de reconhecer mascarados na rua. Pelo jeito de andar, por exemplo. Aos poucos, fomos nos acostumando ao apêndice facial. De tal modo que, quando fui ao Recife, em novembro, vivi a louca experiência de caminhar pela praia ao ar livre, sem nenhum estranho por perto, com o rosto completamente exposto ao sol. Era Boa Viagem, mas me senti pelado em Tambaba, na Paraíba. Nudez é mesmo um traço cultural.

Com o tempo, desenvolvemos técnicas para identificar as pessoas – pela testa, pelas sobrancelhas, pela voz abafada sob a máscara. E aí um decreto nos manda reajustar os ponteiros e começar a ver rostos com a metade de baixo à mostra.

Prepare-se para algumas surpresas, nem todas esteticamente agradáveis. Tem gente que nasceu com olhos lindos – e para por aí. A boca é murcha, a dentição é torta, o bafo é de onça com azia. O uso da máscara nos protegia de várias decepções.

Por razões bastante conhecidas de quem lê este blog, não tenho percorrido as ruas como sempre foi do meu feitio. Mas tenho olheiros por toda parte. E eles me contam que chega a surpreender o número de pessoas usando máscara, agora que liberou geral. Não me espantei. Nosso jeitinho é o velho “finge que aceita”, dando uma banana pros manda-chuvas.

Não confiamos no governo quando a pandemia se instalou e eles nos deram todas as razões para isso. Agora tentam nos convencer que o pior já passou e nossa desconfiança só aumenta. A hora é de resistir à tentação desmascarada. Respira, faz a muçulmana e deixa pra mostrar o rostinho na intimidade. Siga investindo pesado na intensidade do olhar.

Memorial da Covid: Alta!

Eu já me sentia móveis & utensílios da UTI quando o médico acenou com a luz tênue de uma alta para o quarto. Trata-se de uma “promoção” dada a quem se recupera bem. Aparentemente, eu gabaritava. Tudo ia depender de uma tomografia do tórax. Por fora, encarei a notícia com elegância nórdica. Por dentro, comecei a espalhar bandeirinhas coloridas nas ideias.

Fiz o exame. Imagine a decepção quando os médicos disseram ter encontrado várias marcas da Covid nos meus pulmões. Boa parte estava em processo de cicatrização, o que era ótimo sinal, mas o corpo ainda exigia cuidados. Portanto, nada de quarto.

Antes do médico entrar na UTI, eu acabara de instalar a máscara bipap, um respirador mecânico que melhora a oxigenação, mas impede o doente de usar óculos e falar. Uma delícia. Pra distrair, coloquei a TV num desses programas de vida selvagem. No episódio daquele dia, uma girafa adulta era cercada por um bando de leões nos cafundós da África. Bem nessa hora, o médico veio me dar a notícia.

Meu desapontamento dialogou perfeitamente com a girafa caindo sob as patadas e mordidas da leãozada. A preocupação agora era saber se a tal sequela era tratável. Era. Ufa! Eu teria melhor sorte que a girafa. O jeito era ficar mais um tempo.

Em poucos dias, numa sexta-feira, veio a notícia sonhada. No sábado, eu seria transferido para o quarto. Era o fim da mamata de ter cinquenta aparelhos conectados ao corpo e de ver um enfermeiro diferente a cada cinco minutos futucando trechos insondáveis da minha anatomia.

Na hora da mudança, a bordo de uma cadeira de rodas pilotada por um técnico de enfermagem, percorri um verdadeiro labirinto – por que os hospitais modernos são assim, cheios de corredores sem sentido? É a técnica de construção do puxadinho, claro.

Cheguei ao apartamento 305, crente que seria uma visitinha rápida. Ilusão. Seguiram-se 15 longos dias – ou 360 horas, sendo que as primeiras 48 foram marcadas pela insegurança: cadê os enfermeiros que não me davam mais atenção?

Devagar, fui pegando a ideia. Havia que se esforçar para ganhar as ruas. E dá-lhe fisioterapia, duas vezes por dia. Dá-lhe exercícios respiratórios, para colocar os pulmões no bom caminho. Dá-lhe comida, também. Nos dias de UTI, eu tinha perdido 10 quilos de massa magra e me sentia sem forças para nada. As pernas, coitadas, pareciam garotas-propaganda dos Médicos sem Fronteira. A parte da comilança foi boa, não vou reclamar.

Criei uma rotina dentro do quarto. Os passos claudicantes dos primeiros dias, praticamente pendurado num andador, deram espaço a pequenas voltas ao redor da cama – e sem o auxiliar ortopédico. Logo conquistei o corredor! Com medo que eu caísse, uma das fisios insistia em me segurar pelo braço, mas eu fechei a cara, emburrado. Ela me deu espaço e eu não caí. Só não consegui acabar com a mania dela de usar diminutivo pra tudo: bracinho, pezinho, arzinho, janelinha. Inferninho.

Enfim, estava tudo nos eixos, o mundo em sossego, quando o médico decidiu me dar alta. Se eu preferisse, podia ser até no mesmo dia, uma sexta-feira. Preferi que fosse no sábado. “Vou curtir mais um café da manhã do hospital”, brinquei. Na real, precisava instalar equipamentos de oxigênio no apartamento, pois eu ainda dormia acoplado a um cateter. 

Quase me arrependi de passar mais uma noite internado. Toda a calma budista que eu demonstrara nos 35 dias anteriores, mesmo em momentos tenebrosos, evaporou com o aviso da alta. O relógio parou de trabalhar, nada mais prestava, o colchão era incômodo, o banho, o remédio, o tempero… Precisei dar um puxão de orelha em mim mesmo pra criar juízo.

A alta estava marcada para as 10 horas. Às 9 eu já estava pronto, sentadinho no sofá. Bastava que os paramédicos viessem me buscar – a ambulância foi exigência do médico. Eles vieram às 13h30. A essa altura, eu era quase a personagem da menina possuída do filme O Exorcista: não girei o pescoço, não vomitei verde nem apelei pro crucifixo, mas recuperei palavrões há muito tempo arquivados.

Às 14 horas do dia 5 de fevereiro, deitado numa maca, tornei a sentir o sol batendo no rosto. Os funcionários do condomínio me aplaudiram e eu revi a madeira envernizada do elevador. Pensei que fosse me emocionar ao entrar em casa, mas não. Olhei para tudo com a alegria calma de quem está de volta ao território que sabe ser seu.

A luta ainda não acabou. A cada dia, a caminhada ganha uns metros e o cateter de oxigênio não precisou mais ser usado. Mas essa doença deixa sequelas nas mais diversas partes do nosso corpo. Algumas só aparecem tempos depois, é preciso ficar sempre atento. Mas se eu não entreguei os pontos no hospital, imagine em meu cafofo.