Os pacientes sumiram

Há quatro anos, ainda estranhando os primeiros dias de isolamento social, a gente tinha certeza que o lockdown ia durar, se muito, duas semanas. Chegou julho. A pilha de mortos por Covid-19 dava sinais de um crescimento apavorante, mas um fio de esperança unia milhares de rostinhos em lives e zooms: “Quando isso tudo acabar, nós sairemos melhores como nunca fomos”, prometiam as fadas madrinhas, baseadas em sei lá que evidência. Em 2024, todo mundo descobriu que fadas mentem. O “seremos melhores como nunca” foi a maior lenda urbana da paróquia.

As pistas eram claras. Atire a primeira pedra virtual aquele que não ficava reparando na decoração das casas de repórteres e entrevistados durante os telejornais. O mundo estava ruindo, nós não encontrávamos os amigos, dávamos banho em lata de ervilha, mas o que chamava mesmo nossa atenção era a coleção de xilogravuras do comentarista político, o paredão de livros falsos nas costas do ministro ou a esculturinha meio brega na estante do ídolo cult. A vida estava dura demais pra prestar atenção em fatos.

O efeito colateral desse desvio de foco foi a explosão de uma surpreendente maré de impaciência. Agora, que chegar de máscaras em ambientes públicos equivale a usar camisa volta-ao-mundo ou saia balonê, as pessoas exercem a impaciência sem o menor constrangimento. Quase como um direito divino.

Contou-me um motorista de uber que já se tornou rotina passageiros mal humorados porque o carro demorou cinco minutos pra chegar (ok, às vezes leva bem mais). A humanidade apagou da memória coletiva as horas passadas sob a chuva , de braço esticado para táxis que ignoravam os potenciais passageiros.

Junto com a impaciência, desenvolvemos também um vocabulário muito específico. Foi o único quesito em que nos tornamos melhores no pós-pandemia: a liberdade de enfileirar palavrões cabeludíssimos em qualquer situação – incluindo elevadores lotados de velhinhas com cabelos de algodão. A novidade é que os palavrões, agora, são proferidos pelas velhinhas.

Ninguém está livre de protagonizar uma cena de desnecessária sofreguidão. Falo com conhecimento de causa – ou, como se diz, lugar de fala. Até aí, zero novidade. Estou ciente de que jamais entrarei pra história como um monge budista contemplativo. Mas, sem perceber, engrossei o coro dos impacientes resmungões. No debate que se seguiu à exibição do documentário Brizola, de Marco Abujamra, no Festival É Tudo Verdade, alguém perguntou como a produção conseguiu cenas tão envolventes. Explicou-se que a equipe de pesquisa rebolou, coisa e tal.

Segunda pergunta: como vocês conseguiram estas cenas? Eu, lá no fim da sala, bufei: “Acabaram de fazer essa pergunta!” Soltei mais um ou dois comentários do tipo – em voz baixa, juro, sem comprar briga – e um rapaz, na fileira à minha frente, olhou pra trás, meio rindo meio sério: “Calma…”. Achei o conselho bom. Sosseguei o facho e voltei pra casa pensando justamente na pressa crônica que nos atinge. É preciso dar um jeito nisso. E logo.

Autor:

Dramaturgo, autor-roteirista de novelas, cronista, jornalista. Paulistano.

Um comentário em “Os pacientes sumiram

  1. Como sempre, voce escreve um texto realista, mas com frescor, leveza e um toque de humor. Os dias horriveis da pandemia estão tao perto de nós, contudo parecem tao distsntes, como se fossem um ponto fora da curva e que jamais retornarão. Eu tentei muito ver nas estantes dos reporteres o que lêem, consegui em slguns casos. Sobre os palavrões, sou uma dessas velhinhas, mas como sempre os falei, acabaram virando marca registrada. Porém, meus palavrões geralmente tem a ver com a situação e não com pessoas, salvo os políticos, quando leio os jornais👹

    PS: Mario, aqui é Ester da GV, gostaria de lhe enviar convite para o lançamento do meu livro no proximo mes. Como faço?

    Abraço, Maria Ester de Freitas (ester.freitas@fgv.br)

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