Até metade da adolescência, festa de Natal pra mim era apenas isso – uma festa. Reunia-se a família toda, onze ou doze tios, mais de 60 primos, cada um trazia uma comida, tia Lurdes e tia Maria disputavam fortemente o troféu de melhor bolo do ano, tio Sebastião fazia farta distribuição de brinquedos simples e ficava todo mundo feliz da vida. Com a morte do meu pai, o clima mudou e a choradeira passou a fazer parte do roteiro.
Reunidas em volta da ceia, minha mãe e minhas tias se olhavam, lembravam dos mortos da família e começava o chororô. No primeiro ano, contribuí com minhas lágrimas. Mas sabe como é adolescente. Do segundo ano em diante, o momento comoção perdeu a força. No terceiro, eu já me retirava pra sala. Do quarto ano em diante, comecei a passar o Natal em outros cantos.
Quando tinha 21 anos, passei meu único Natal na Europa, mais especificamente em Bordeaux. Fiquei hospedado durante uns dois meses na casa do Hans-Peter, um alemão que estudava Medicina na França, mas queria aprender português pra tocar bossa-nova em um conjunto amador. Nós nos conhecemos quando ele foi a Lisboa aprender português e percebeu que o sotaque lusitano não ajudava a cantar abraços e carinhos e beijinhos sem ter fim.
Nasceu a proposta: por que eu não ensinava Hans e seus amigos a malemolência do português do Brasil através das canções? O fato de eu não saber cantar foi detalhe rapidamente superado. Mais complicado era traduzir as letras pro francês, já que eu era, à época, um monoglota militante. Mesmo assim, fizemos um acordo: eu ensinaria a pronúncia e tentaria explicar as letras, enquanto eles me ensinavam a falar francês.
Pras versões, eu me virava com o auxílio de um dicionário francês-português de bolso. Tudo estava fluindo bem até eles resolverem cantar Água de Beber. Dizem que foi a primeira música popular feita no então campo de obras chamado Brasília, em 1959. Vamos ser sinceros, a letra do Vinicius de Moraes já não fazia muito sentido em português, imagina em tradução muitíssimo da malfeita? Não sei que versão eu dei, mas o grupo gostou e se apresentou algumas vezes pelos botecos franceses. O Natal na casa do Hans foi meu primeiro contato com o inverno europeu. Não deu match.
Nos tempos de repórter da Folha descobri que não era só minha mãe que ficava triste no nascimento de Jesus. Os plantões na editoria de polícia – onde eu estava incrustado – eram mais movimentados no Natal do que no Carnaval. Como se cometiam crimes passionais no dia 24! Repórteres mais experientes explicavam: além da overdose de comemorações familiares, Natal é cada vez mais uma bacanal do consumo.
Numa cidade formada por deslocados vindos de todos os cantos do mundo, sobra frustração. A chance de passar a noite sem dinheiro e sozinho num quarto de pensão é enorme. Assis Valente (1911-1958) tinha razão: Papai Noel com certeza já morreu ou, então, felicidade é brinquedo que não tem. No Carnaval, é diferente. Ninguém é de ninguém, são só três dias de folia, na quinta-feira a gente faz o balanço e vê o que sobrou.
Aproveitando que esta é a última crônica de 2021, vou tirar uns dias de folga. Volto dia 9 de janeiro. Feliz 2022 – que ficará conhecido como “o último ano desse governo abominável”.