Baby Eversong

Foi coincidência. Na mesma semana em que venci minha resistência a séries excessivamente badaladas e assisti a Bebê Rena, na Netflix, mergulhei também na biografia A incrível história de Leny Eversong ou A Cantora que o Brasil Esqueceu, do jornalista e pesquisador Rodrigo Faour. O que a série inglesa contemporânea sobre uma perseguidora maluca tem a ver com a vida de uma cantora de vozeirão único e sucesso restrito, morta em 1984? As protagonistas são (e eram) mulheres muito acima do chamado “peso ideal”. Favor notar as aspas.

Escrita e interpretada por Richard Gadd, que jura ter se inspirado na própria vida, Bebê Rena gira em torno da relação da carente Martha e Donny, um barman candidato a ator de stand up comedy. Martha e Donny são o que poderíamos chamar de dois lascados, sem grana, amor e beleza. Gostei dos sete episódios da minissérie e da maneira como os fatos se desdobram. Mas desde o início algo me intrigava: a atriz que faz Martha, a excelente Jessica Gunning, é baixinha, rechonchuda e mescla uma carinha fofucha com uma expressão assustadora desde sua primeira entrada. Por quê?

Antes mesmo de Martha deixar 50 mensagens de voz no celular de Donny, ela já é “vendida” como um personagem-problema. Fora de qualqeur casinha, mesmo. Inicialmente, Donny, que é um carente profissional – cujo segredo desvendaremos no quarto episódio -, aceita a paparicação. O que me incomodou, entretanto, foi a construção física de Martha. Por que ela precisou ser baixinha e gorducha?

Segundo os estudiosos de humor, um dos motivos que nos fazem rir dos outros é vê-los como inferiores a nós, fisica e culturalmente. Inferior pode ser qualquer pessoa que fuja do modelo standard: muito baixo, muito gordo, muito magro, muito gago, etc. Aparece uma figura assim na história, você já intui que é uma comédia. Ninguém ri do que é superior a nós. Mas os tempos mudaram e a gente aprendeu que rir do diferente nem sempre é amostra de humanismo. Bebê Rena bagunça o coreto, ao pegar personagens que nos fariam rir e dar um nó na história.

Se a ideia fosse extrair humor do diferente, o próprio roteiro toma cuidados extremos: em nenhum momento há referência sobre a gordura da moça. Mas insisto na estranheza. Se a atriz fosse dona de beleza convencional – alta, magra, rosto de princesa –, alguém acreditaria? Só os feios são stalkers? Aliás, onde está escrito que uma baixinha rechonchuda não é bonita? Por que damos de barato que ela é stalker e pronto? Não vale dizer “ah, ela tem um sorriso lindo…”

No constante bate-boca que mantenho comigo mesmo, acabei por entender que as campanhas de conscientização estão surtindo efeito – em mim, pelo menos, o que achei ótimo. Piadas que antes eram hilárias, hoje são constrangedoras. Não é questão de autopoliciamento, mas de cair na real. Tem coisa que é escancaradamente sem graça. Pior, é ofensiva.

A série inglesa, é preciso que se diga, se sai muito bem. A personagem da mulher trans, por exemplo, tem uma função dramática forte, pois coloca a sexualidade do protagonista num intrigante xeque-mate. Há um violentador, pra quem não se passa pano, mas que… enfim… só vendo. Há cenas absurdamente boas, como o desabafo de Donny ou sua conversa com os pais.

Agora, você vai me perguntar: o que Bebê Rena tem a ver com a cantora santista, nascida em 1920 e morta em 1984? Entre o berço e a cremação, Hilda Santos virou Leny Eversong e fez um sucesso absurdo nos cassinos de Las Vegas, brilhou no Olympia de Paris, foi aplaudida por Frank Sinatra e teve shows abertos por uma novata chamada Sarah Vaughan. Mesmo sem falar um yes que fosse, cantava em inglês irretocável – seu produtor copiava todas as palavras como deviam ser ditas e ela mandava brasa.

Cantava também em francês, italiano e espanhol, sempre pelo mesmo método didático. Tinha uma voz operística, exagerada mesmo, pouco maleável pro nosso ziriguidum cotidiano. Leny e sua garganta de mil decibéis, que sempre foram criticadas por “não valorizar a música brasileira” começaram a sair de moda a partir do final dos anos 1960. A carreira ainda se estendeu até os anos 1970, mas o sumiço do marido – uma história nunca bem esclarecida – empanou o brilho que ainda restava à cantora. A estrela foi se apagando.

Ao longo de sua carreira, mesmo nos anos dourados, havia algo imperdoável em Leny: ela era gorda. São incontáveis as reportagens reproduzidas no livro de Rodrigo Faour, com fotos que mostram a cantora se pesando, comendo largas fatias de bolo e sorrindo – gordos sempre aparecem com a dentição exposta.  Os trechos das críticas e reportagens são inacreditáveis: “Leny Eversong não tem pretensões de ser bonita”, “Leny: cem quilos de voz”, “Essa gorda aí, com ar de primeira da classe” ou “a figura panorâmica de Leny Eversong ” são exemplos de 1960, felizmente colocados pra fora do aceitável.

Entre Leny Eversong e Martha passou-se um universo. O modo como as duas mulheres foram tratadas – na vida real e na ficção – mostra que, sim, estamos aprendendo. Escorregamos de vez em quando, é verdade, achando nas entrelinhas que uma figura gorduchinha é risível, mas a busca pelo acerto será sempre louvável.

P.S. Renas estão na moda. Também na Netflix o filme sueco Herança Roubada conta a história de uma comunidade criadora de renas na Lapônia. Na trama policial, os cervídeos são umas gracinhas, especialmente quando bebês.

Autor:

Dramaturgo, autor-roteirista de novelas, cronista, jornalista. Paulistano.

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