A leseira saiu do armário

Em Solo de Clarineta, suas memórias incompletas, o escritor gaúcho Erico Verissimo conta que, depois dos 50 anos, descobriu e colocou em uso o direito inalienável de não ir. Sentia-se plenamente desobrigado de comparecer a qualquer evento que ele apenas ilustraria com sua presença. Li esse livro quando já tinha mais de 50 anos e me senti impactado pelas reflexões de Erico . Só agora, vencida a barreira dos 60 (já faz um tempinho, na real), tento colocar a teoria em prática.

Quase nada na minha vida é automático. Gasto um tempo amadurecendo ideias, criando coragens, arriscando pequenos passos – ou seja, em constante movimento. Precisei rebolar bastante, ao longo dos últimos 756 meses de vida, para tirar a preguiça do armário.

A coitadinha não sabia nem por onde começar, já que seu dono – eu –estava sempre fazendo alguma coisa. Primeiro, pela necessidade de pagar boletos. Depois, por vício mesmo. Sentar no jardim e ficar vendo a grama crescer nunca foi comigo.

De uns meses pra cá, vi nascer em mim o prazer da leseira. Favor não confundir com irresponsabilidade. Sigo cumprindo meus deveres, direitinho. Mas os dias de folga passaram a ser aproveitados na essência. Aliás, os dias de folga passaram a existir de verdade.

Eu era do tipo que ficava muito azedo se acordasse depois das 10 da manhã. Dava o dia por perdido. Aos poucos, isso vem mudando. Se, pela manhã, o rádio anuncia uma temperatura de 12 graus, às 7h30, eu apenas afofo o travesseiro e descanso a cabeça. Não vou sair à procura do que fazer, pra não correr o risco de encontrar.

Somos mais escravos do relógio do que acreditamos. Desde cedo, fomos domesticados a cumprir horários: escola, curso de inglês, sessão de cinema, hora de voltar pra casa… Depois, vem o trabalho, mais cursos, isso e aquilo e aquilo outro. Desenvolvemos o despertador que fazia tic-tac. Depois, o outro, silencioso. E agora, dormimos com o celular programado pra nos acordar. Marcamos a vida pelo tempo que nos custa cada atividade. Até uma pulada de cerca é medida assim – uma rapidinha.

Para criaturas como nós, nascidas sob o signo da Ampulheta com ascendente em Estou Atrasado, abolir o relógio é uma contravenção pesadíssima. Não é bolinho: num dia sem compromisso, até nossa sombra nos olha com desconfiança.

O diabinho operário, encarapitado no nosso ombro direito, insiste em nos convencer que não fazer nada é uma coisa muito feia. O problema é que o chatonildo reina sem concorrência. O anjinho preguiçoso, que deveria se contrapor, segue à risca os próprios conselhos. Fica deitado na rede bebendo água de coco e se balançando bem devagar. A gente que lute pra destronar o diabinho da culpa. Não fazer nada dá trabalho.