Gincana sem graça

Apesar dos avanços da medicina, ficar doente hoje em dia é muito complicado. Não basta saber descrever o que o incomoda. “É uma dorzinha assim, que nasce aqui por trás do estômago e…” não funciona com os novos médicos. Você precisa chegar no consultório com um diagnóstico praticamente fechado, cabendo ao doutor preencher com um X o quadradinho da ficha. 

Pode ser que ele discorde e você será olhado com um desdém inimaginável. “Não, você não está sentindo nada disso” – é o que o olhar de desprezo parece dizer. É quase uma ofensa postar-se diante do doutor sem dominar o jargão médico de ponta a ponta.

É fundamental também acertar na mosca quanto à especialização do profissional. O craque em joelho esquerdo ignora a existência do direito, nem adianta insistir. A impressão é que as aulas de anatomia na faculdade são com partes muito específicas de cada defunto, o curso é corrido e não há tempo pra estender o ensinamento. O médico que tratava de unha encravada a avanço do Alzheimer e conhecia a família toda, desde que as caravelas chegaram no Brasil, virou personagem de romance antigo.

Para se cuidar, você passa por um número insano de especialistas. E eles, muitas vezes, não se entendem. O médico 1 receita o remédio que deixará o médico 2 em pânico, sendo que o médico 3 discorda dos dois – e você, o principal interessado no assunto, voltará para casa sem saber que remédio tomar. Vence o doutor que for mais convincente, mais simpático, mais bonitinho, enfim, cada um tem seu critério. Em geral, vence mesmo aquele que oferece um tratamento menos desagradável ou mais em conta.

O que mais tem incomodado os pacientes atuais é a pouca disposição dos médicos em tocar fisicamente os doentes. Deve ser protocolo da Covid-19. Mas, gente, o pessoal discute a fantasia que vai usar nos bloquinhos de carnaval e o médico ali, cheio de “não-te-tocos”? Já presenciei diálogos incríveis. “Eu estou sentindo um incômodo nessa vértebra” e o médico, de olho no computador, balança a cabeça. “Eu tô vendo aqui, tá tudo em ordem com você”.

Por falar em computador, marcar consulta hoje em dia exige ainda que o doente seja perito em informática e bom de memória. É quase uma gincana seguir o cardápio ao telefone: disque 1 para consulta virtual, disque 2 para consulta presencial, disque 3 para exames de imagem… No 4, você já esqueceu as alternativas anteriores. A próxima etapa será usar algarismos romanos. 

Digamos que você consiga avançar algumas casas. A rede vai ficando mais e mais seletiva. Número da carteirinha do convênio, ok. Aí, eles pedem pra você, pelo telefone, dissecar o pedido médico. O caldo entorna. Quem entende a letra daquele sujeito? “Qual o CID?” Dá vontade de responder: “O Moreira! Acertei?” A mocinha do telefone não vai rir, essa resposta não consta do caderno dela.

O pior é quando pedem pra você escanear e enviar o pedido médico por e-mail. Parece o presidente da Caixa Econômica falando, como se todos os brasileiros – mesmo sem dente, sem comida, sem escola, sem teto – dominassem perfeitamente a linguagem da informática. Mas pode piorar. Você manda o que pediram e ninguém consegue localizar. Você fez tudo certo, mas adivinha quem passa por louco?

A mais nova mania dos planos de saúde é desincluir procedimentos. Ou você pega o pedido e vai caçar algum lugar que faça ou se submete ao preço (“com desconto”). Muitas vezes, você topa a chantagem – quer se livrar logo da dor, quer uma resposta mais rápida, enfim… Todo mundo sai ganhando, menos o seu bolso, que estava em dia com a mensalidade do plano.

É claro que todo esse chororô diz respeito a quem consegue manter o plano de saúde. A maioria vai mesmo para a saúde oferecida pelo governo. Por melhor que seja em muitos aspectos, o SUS não consegue dar conta de tanta demanda. As filas são intermináveis, as greves são constantes e parece que nunca tem pediatra na UBS do bairro. Pra que, né, mesmo?

Autor:

Dramaturgo, autor-roteirista de novelas, cronista, jornalista. Paulistano.

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