Este seu olhar…

As máscaras começaram a cair, festejaram os salientes. Lá vem a temporada dos feios, lamentaram os pessimistas. Eu é que não paro de usar a minha, alertaram os desconfiados. Resumo da ópera: por quase todo o país, ninguém ficou insensível aos decretos que suspenderam a obrigatoriedade do uso de máscaras em locais abertos. Conforme a cidade, ficou praticamente proibido cobrir o rosto.

O problema agora é outro. O corpo precisa de um tempo para se adaptar às bruscas mudanças de temperatura, que transformam termômetros numa gangorra prejudicial à saúde. Com o cérebro acontece a mesma coisa. Lembra dos primeiros meses de pandemia, quando você era abordado na rua por um desconhecido de olhos brilhantes, que te chamava pelo apelido de infância? Fiz muita cara de assustado para amigas que abandonaram o hábito de tingir cabelos e circulavam libertas de todas as henas. 

Um dia fui reconhecido no ônibus por um rapaz, obviamente mascarado. Ele se mostrava muito feliz em me encontrar e eu procurava um modo minimamente elegante de demonstrar que não fazia ideia de quem se tratava. Não teve jeito: “Baixa a máscara um instante, por favor”. Ele riu, fez o que eu pedi, eu mandei um entusiasmado “ah, é você!” e saltei do ônibus na parada seguinte, sem fazer a menor ideia de quem se tratava.

Me aconteceu também de reconhecer mascarados na rua. Pelo jeito de andar, por exemplo. Aos poucos, fomos nos acostumando ao apêndice facial. De tal modo que, quando fui ao Recife, em novembro, vivi a louca experiência de caminhar pela praia ao ar livre, sem nenhum estranho por perto, com o rosto completamente exposto ao sol. Era Boa Viagem, mas me senti pelado em Tambaba, na Paraíba. Nudez é mesmo um traço cultural.

Com o tempo, desenvolvemos técnicas para identificar as pessoas – pela testa, pelas sobrancelhas, pela voz abafada sob a máscara. E aí um decreto nos manda reajustar os ponteiros e começar a ver rostos com a metade de baixo à mostra.

Prepare-se para algumas surpresas, nem todas esteticamente agradáveis. Tem gente que nasceu com olhos lindos – e para por aí. A boca é murcha, a dentição é torta, o bafo é de onça com azia. O uso da máscara nos protegia de várias decepções.

Por razões bastante conhecidas de quem lê este blog, não tenho percorrido as ruas como sempre foi do meu feitio. Mas tenho olheiros por toda parte. E eles me contam que chega a surpreender o número de pessoas usando máscara, agora que liberou geral. Não me espantei. Nosso jeitinho é o velho “finge que aceita”, dando uma banana pros manda-chuvas.

Não confiamos no governo quando a pandemia se instalou e eles nos deram todas as razões para isso. Agora tentam nos convencer que o pior já passou e nossa desconfiança só aumenta. A hora é de resistir à tentação desmascarada. Respira, faz a muçulmana e deixa pra mostrar o rostinho na intimidade. Siga investindo pesado na intensidade do olhar.

Autor:

Dramaturgo, autor-roteirista de novelas, cronista, jornalista. Paulistano.

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