Pedacinhos de papel

No Houaiss, miscelânea pode ser definido como “um conjunto confuso de coisas diferentes”. Pra mim, miscelânea será eternamente o nome de um álbum de figurinhas que ganhei quando tinha 7 anos. O álbum virou poeira, mas ficou o fascínio da palavra. “Miscelânea” tem uma sonoridade única, as letras se juntam e bailam na boca. Experimente: mis-ce-lâ-ne-a!

O álbum do meu passado era uma coleção deliciosa da chamada cultura geral, indo de animais do fundo do mar a capitais do mundo de então, passando por cantores de quem eu nunca tinha ouvido falar – Elza Laranjeira, por exemplo, estava totalmente fora do circuito em 1967, mas mereceu uma foto no álbum. Foto bem ruim, por sinal.

Naqueles tempos, quando tudo na vida era só mato, não existia a moleza da figurinha autoadesiva. Tínhamos de colar foto a foto. Os mais durangos – peguemos, por exemplo, eu – aprendiam a fazer um grude com água e farinha de trigo. Era esquisito, mas colava mesmo – e deixava cada página bastante pesada.

Havia uma família na minha rua, na zona norte profunda de São Paulo, que se desdobrava pra equilibrar o orçamento no fim do mês. O pai era pedreiro, os cinco filhos eram pequenos e dona Bela, a mãe, era a tradicional “do lar”. Dona Bela sempre encontrava um jeito de descolar um troco a mais. Para minha alegria inenarrável, durante uma época ela conseguiu um bico de empacotadora de figurinhas.

Foi a primeira vez que entendi os saquinhos de figurinhas como um produto manipulado antes de chegar às minhas mãos. Quem diria? Alguém colocava os três pedacinhos de papel em cada embalagem! Genial. 

A coisa funcionava assim. Um carro despejava uma montanha de figurinhas na sala e dona Bela reunia os filhos para empacotar as danadas. Não perdi tempo e me ofereci de voluntário. Logo percebi que não seria um empacotador comum. Eu era uma espécie de ourives da figurinha.

Depois de me familiarizar com o sistema de trabalho, entrei no campo dos requintes. Eu não era um trabalhador mecânico, de jeito nenhum! Escolhia as figurinhas que iam em cada envelope! Separava as carimbadas – aquelas que, uma vez encontradas, ajudavam o colecionador a ganhar um prêmio – para colocar em saquinhos abençoados pela sorte.

Num dia de espírito de porco, coloquei duas figurinhas repetidas no mesmo envelope. Mas juro que foi só uma vez. Se você que me lê foi o infeliz comprador do pacotinho, me perdoe. Em outra ocasião, tocado pelo Espírito Santo, coloquei três carimbadas no mesmo saquinho. Até hoje, imagino a surpresa feliz de quem as encontrou. Se foi você, não precisa agradecer.

Não preciso estender muito a ópera: minha carreira de empacotador de figurinhas não durou. Dona Bela, sacando minha lerdeza crônica, logo deu um jeito de me dispensar – com delicadeza, pois ela era uma fofa.

Retornei às páginas do melhor álbum de figurinhas que conheci em toda minha vida – até então. Era um caderno que trazia em maravilhosas fotos coloridas as cenas mais legais do filme El Cid, estrelado por Charlton Heston e Sophia Loren. Na flor dos meus 7 anos, eu não fazia ideia de quem fossem Charlton e Sophia, mas fiquei vidrado no álbum.

Foi a primeira vez que o ácido da inveja invadiu meu coração. El Cid, o álbum, pertencia a meus primos Carlos e Celso, que moravam na Vila Medeiros – pertíssimo de onde hoje brilha o restaurante Mocotó (a irmã deles, Vera, era muito nova, nem deve lembrar). Como as famílias se frequentassem com assiduidade, logo que chegava lá eu corria ao armário ou à estante onde ficavam livros e cadernos. El Cid estava lá, quase que à minha espera.

Com os anos, o álbum foi se desmilinguindo. Perdeu a capa, algumas fotos, descambou. E eu adolesci sem vontade de ficar visitando tios e tias. Curioso é que, adulto, nunca vi o filme. Dirigido por Anthony Mann e lançado em 1961, ele dura mais de três horas, o que deve ter contribuído pra minha preguiça. 

Atiçado pela vontade de escrever a respeito dele, fui atrás de informações sobre o álbum. Foi lançado por aqui em 1965 e até hoje não consigo entender como um exemplar chegou à Vila Medeiros, na casa de uma família que não tinha no cinema sua principal fonte de distração. A pesquisa me ajudou a descobrir que El Cid, o álbum, tem muitos fãs. A ponto de estar cotado no Mercado Livre a 500 reais. Foi curioso ver o passado assim, devidamente valorizado.

Enquanto escrevia, tentei entender quais labirintos percorri para chegar nessa inusitada sessão nostalgia. Há muitas décadas, colecionar figurinhas não é meu hobby. Então, por que o guerreiro castelhano Rodrigo Diaz de Vivar, El Cid, passou a mão na Miscelânea e voltou à minha lembrança? Creio que o gatilho foi o susto que levei com a Covid e que pessoas muito queridas têm passado com outras doenças. O álbum não está completo, longe disso. Ainda restam muitas páginas pra colar figurinhas nesta vida.

Autor:

Dramaturgo, autor-roteirista de novelas, cronista, jornalista. Paulistano.

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