Linhas Cruzadas

Essa é do tempo em que só existia telefone fixo. Você tirava o aparelho do gancho e já tinha alguém falando animadamente do outro lado. Muitas vezes, dava pra seguir uma conversa inteira. Algumas eram agressivas, outras eram puro negócio e ainda havia as bem picantes. Mandava a boa educação que se desligasse imediatamente e tentasse uma nova linha. Mas desde quando a boa educação impera nos costumes?

Era engraçado meter o bedelho na conversa. Dar palpite mesmo. Alguns, bem absurdos. Surpreendida, a pessoa do lado de lá desligava bruscamente, avisando que “tinha boi na linha” – uma figura de linguagem curiosa, herdada dos tempos rurais, em que havia gado e ferrovia nas imediações. Em ambiente urbano, significava apenas que havia abelhudos a bisbilhotar a conversa.

Alguns não se contentavam em desligar. Antes, despejavam no ouvido do curioso um repertório de palavrões digno de peça do Plínio Marcos. Se atingisse o nervo, o bisbilhoteiro retrucava – ele, sim, ofendido. Era mais ou menos como as pessoas fazem hoje nas redes sociais, o anonimato garantindo o desbocamento.

Mais engraçado era quando você conseguia identificar uma das pessoas flagradas na linha cruzada. Se fosse ligação romântica ou maliciosa, melhor ainda. Pensando novamente nos recursos tecnológicos de hoje, seria como reconhecer por algum sinal da pele a prima moralista ou o vizinho todo careta num site de encontros sexuais para adeptos do sado-masoquismo.

Há também quem conte histórias de casais formados a partir de uma linha cruzada. Era um prato cheio para novelistas, por exemplo. O imponderável colocava no caminho da mocinha romântica – melhor dizendo, nos nossos ouvidos – o camarada que iria fazê-la feliz para sempre. Se não me falha a memória, teve até filme do sujeito que reconhecia a amada pela voz entreouvida numa conversa telefônica interceptada.

Muitas vezes me pego pensando em como seria cruzar as linhas dos telefones celulares. Alguém consegue imaginar isso? Pense num transporte público, na sala de espera do cinema ou num restaurante. Várias pessoas falando ao mesmo tempo com outras pessoas fora dali, assuntos variados, alguns até bem íntimos. De repente, um tilt qualquer nos satélites de comunicação – e as linhas se cruzam!

A moça triste que esperava o desatento don Juan iria cair no celular de um cara que só queria pedir uma pizza por telefone. O rapaz inquieto, que ligara para um colega de trabalho, acabaria trocando ideias com outro rapaz, tão inquieto quanto, descobririam afinidades, marcariam um chope pro fim de semana e nunca mais se desgrudariam, apaixonados. Uns discutiriam política, outros futebol, outros desligariam assustados – mas ficariam com um gosto de arrependimento, aquela voz ouvida por acaso parecia tão bonita…

Acho que nem isso seria possível hoje em dia. Exceto pelos passageiros de ônibus e metrô, as pessoas falam pouco ao telefone. Acham melhor mandar mensagens por escrito – daquele jeito, mas escrito – do que soltar a voz. É bem possível que nossa capacidade de falar e ouvir comecem a se enferrujar, até que garganta e ouvidos se tornem obsoletos. Dá medo pensar que isso já esteja acontecendo.

Cinquenta anos

Não faz muito tempo, o capitão de-quem-não-gostamos-de-dizer-o-nome, potencial futuro presidente da República, segundo as pesquisas, declarou que, com ele, o Brasil vai voltar a ser o que era cinquenta anos atrás. Espécie de Juscelino às avessas, o militar deve ter saudades de sua adolescência – em 1968, ele tinha apenas 13 anos e duvido que guarde lembranças muito fortes do período.

Ele não lembra, por exemplo, que 1968 foi o ano em que o regime militar apertou ainda mais os parafusos. Baixou o AI-5, caçou direitos políticos, perseguiu, matou, desapareceu com muita gente. Eu, que sou bem mais novo que o capitão, conheci muitas pessoas que sumiram de uma hora pra outra – colegas do grupo da igreja, professores bacanas, conhecidos da rua.

Fora a parte política – pelo número de eleitores que parece ter, muita gente dá aval a regimes de exceção -, dizer que o Brasil pode voltar a ser o que era cinquenta anos atrás é uma verdadeira ameaça tecnológica. Será que faz parte dos planos do candidato o banimento dos serviços de internet banking? Já se disse que ele está de olho no WhatsApp, um de seus principais meios de propaganda política. Quer controlar.

Pra quem nasceu sob o domínio das redes sociais, é bom explicar. Há cinquenta anos, para receber salário era preciso ir pessoalmente ao banco e sacar com cheque. As empresas não tinham hábito de depositar o pagamento nas contas dos funcionários. As contas, quase todas vencendo em datas próximas, tinham que ser pagas ao vivo e em dinheiro. Todo mundo fazia isso, geralmente nas mesmas datas. Era uma lotação desoladora.

Filas também eram comuns nos dias de entrega do imposto de renda. Sim, o Leão já existia e com muita fome. Fazia-se tudo à mão, anexava-se todos os comprovantes e enfrentava-se filas homéricas para a entrega. Nos dias próximos ao prazo final, havia plantões durante a madrugada nas agências bancárias. Era lindo.

Em 1968, obviamente, não havia celular. Pra falar a verdade, mal havia telefone. Os públicos só brotaram nas ruas a partir de 1973. Os particulares eram caros e disputados a tapa. Valiam tanto que deviam ser arrolados como bens na declaração de rendas. Bate-papo, só ao vivo. Paquerar, também, era coisa pra ser feita olho no olho. Esquisito, eu sei, mas funcionou direitinho durante muitos anos.

Os costumes eram outra história. Ir de bermuda e chinelos ao cinema? Em São Paulo, nem pensar. Simplesmente, não se imaginava alguém andando na rua com esses trajes. As moças – as “fraquejadinhas do capitão” – viviam no sufoco. Poucas trabalhavam, muitas eram mesmo desaconselhadas a estudar (“Pra quê? Diploma não serve pra casar”) e só podiam sair à rua na companhia de outro homem da família. Pais e irmãos. Primos, nunca. Fumar, só dentro de casa, e olhe lá.

Muita gente que idolatra o capitão diz que ele vai botar ordem no barraco, vai acabar com a farra dos assaltantes. Bonito. Mas todo mundo esquece que o Brasil de 1968 não tinha nem 90 milhões de habitantes – menos da metade dos 210 milhões que somos hoje. Naquela época, havia ladrões e assaltantes, claro. Mas havia menos gente nas cidades, os núcleos rurais ainda tinham um peso forte na distribuição populacional.

Nos anos 70, houve uma espécie de incentivo para se tentar a vida nas grandes cidades. As pessoas vieram, mas alguém esqueceu de colocar na conta os itens de moradia e emprego. Resultado: favelas, falta de trabalho, criminalidade… Acrescente uma camada de tráfico e está desandado o bolo social.

Voltar cinco décadas pode ser uma frase de efeito eficaz, mas é assustador. Como tudo o que certa essa figura. Estamos mal servidos.

 

 

Santinhos ao vento

No dia da eleição, caminhando pela calçada rumo ao colégio onde votei, fiquei vendo a quantidade absurda de propaganda eleitoral jogada nas ruas. Se houvesse o não-voto, como pregou outro dia o Humberto Werneck no Estadão, eu teria me abaixado pra calcular qual candidato havia sacrificado mais árvores em nome de uma eleição qualquer. Não-votaria nele, com certeza.

Em tempos de campanhas virtuais, o santinho virou quase uma teimosia nostálgica. Quando eu era criança, ajudei a distribuir muito santinho pra um candidato que meu padrinho apoiava – era um cara da Arena, olha que vexame, um radialista chamado Neilor de Oliveira. E eu me sentia próximo de uma celebridade, só por ter nas mãos a foto do sujeito.

Em nome da paz familiar, minha mãe sempre votava nos candidatos apoiados por meu padrinho. Sempre perderam. Quando cresci, já com ventos esquerdistas tomando conta das minhas ideias, passei a recomendar a minha mãe o voto nos políticos mais desprezíveis. Sempre deu certo: eles nunca emplacaram. D. Quitéria e sua militância do avesso estão fazendo falta nessa campanha.

Santinhos também eram os folhetos que as famílias distribuíam na missa de sétimo dia de um parente. Havia sempre alguém que não gostava da foto escolhida pra decorar o panfletinho fúnebre. Havia também os que colecionavam santinhos de mortos – o do Fulano ficou uma beleza, já viu?

Isso foi no tempo em que os velórios eram em casa, o que sempre dava uma despesa extra: além do caixão e das flores, tinha que comprar café, bolo, algum tira-gosto pra animar a plateia. Fazia-se um ranking dos velórios mais concorridos e dos mais bem servidos de guloseimas. E tinha o santinho de souvenir.

Os políticos roubaram a ideia de panfletar suas candidaturas. Em terra de semi-alfabetizados, era uma maneira de fazer o eleitor carregar o número do postulante à deputância. E dá-lhe folheto, santinho, ficha, foto, o diabo. As ruas entupiam de papel inútil. Se chovesse, ia tudo pros bueiros.

Houve eleições em que era proibido entrar com santinho na sala de votação. Você tinha que escrever a cola na mão, pra não cometer burrada maior do que a inevitável. Em outros pleitos, era proibido usar camisetas partidárias. A gente circulava com a roupa de nosso partido e, na hora do voto, colocava outra por cima. Lembro de uma mulher que tirou a camiseta na zona eleitoral e votou de sutiã mesmo.

Na verdade, o que havia de legal nas primeiras eleições depois do Regime Militar era o entusiasmo de todo mundo ao redor de seus candidatos. Havia paixão, talvez pela novidade da coisa. Hoje em dia, num mundo marcado pelas redes sociais, temos ódio puro e simples, violência descontrolada. Perdeu a graça.

Restaram os santinhos, distribuídos às toneladas por quem dá graças a Deus ter aparecido esse bico – e ainda provavelmente ainda rola uma camiseta de brinde no fim do dia. Os tempos da militância abnegada ficaram para trás, soterrados por santinhos nas sarjetas da cidade. O não-voto faz falta.