Ninguém foi ao cinema

Ao contrário do que anunciava o cineasta Júlio Bressane em 1969, ir ao cinema nunca é a primeira opção de quem passa fogo na família. Em janeiro de 1985, em São Paulo, o então adolescente Roberto Peukert matou pai, mãe e três irmãos numa noite de sábado. Colocou todos os corpos no porta-malas do carro da família, largou o veículo num terreno baldio e voltou pra casa, onde limpou as marcas do crime. Na noite do domingo, sob pressão do delegado, confessou a autoria das mortes, enquanto comia uma pizza. Se não me falha a memória, de mussarela.

Em 2002, aborrecida com as limitações impostas pela mãe, a também adolescente Suzanne von Richtoffen arquitetou um plano, no qual seu namorado e seu “cunhado” mataram pai e mãe da jovem sob possível orientação dela. Pra garantir um álibi, Suzanne foi com o namorado pra um motel. Quando vi pela TV que ela tinha guardado o recibo do motel, afirmei categoricamente: “Foi ela”. Quem pega recibo de motel? Se tivesse apostado, teria ganho todas. Suzanne foi condenada a 39 anos de prisão. Saiu em 2023, casou-se com um médico, teve um filho e mora no interior, com status de celebridade local.

Antes, notícias como essa mobilizavam o noticiário por um tempão. Se os Estados Unidos tinham malucos que invadiam escolas e matavam meio mundo, nós tínhamos jovens absolutamente comuns que, de repente, surtavam. Chamo a atenção para o adjetivo “comuns”. Era o caso de Roberto Peukert. Eu era repórter de polícia da Folha e fui escalado para fazer o perfil do jovem assassino através dos depoimentos de quem fosse ao velório coletivo – ele não deu entrevistas por um largo período. Roberto era um jovem sem nada de especial. Aos 19 anos, ainda cursava a sétima série do colégio e vivia de namoricos e joguinhos.

O único detalhe que destoava era que ele nunca se rebelava contra o regime severo dos pais – um português de 46 anos e uma polonesa de 42. Roberto só explodiu uma vez: a mãe mandou o primogênito abaixar o volume do aparelho de som e, como era de costume, ele obedeceu. A mãe deu a bronca e foi dormir. Em seguida, Roberto armou-se de um revólver e uma faca e acabou com todo mundo. Foi condenado a 25 anos de reclusão. Em 2013, fora da cadeia, conquistou o direito à herança total dos bens familiares.

Há poucos dias, um rapaz de 16 anos pegou o revólver do pai, guarda municipal, e matou a família toda: o pai, de 57 anos, a mãe de 50 e a irmã de 17. Motivo: o garoto teve o celular confiscado pelos pais. Ele passou uma noite com os mortos em casa, mas saiu – não para ir ao cinema, mas à padaria, onde comprou uma baguete e um pão doce. Ah, foi à academia malhar um pouco e desestressar. Logo a história escorregou pra vala comum das notinhas ligeiras.

Será que nos habituamos a essas notícias? Antes, os casos ganhavam até nome próprio: o Caso da Rua Cuba, por exemplo, quando um advogado e sua mulher (ligada a uma tradicional família de criminalistas) foram assassinados dentro de casa na véspera do Natal de 1988 e o principal suspeito parecia ser o filho. Os anos passaram, o rapaz nem chegou a ser julgado e hoje é advogado bem sucedido.

Crimes que envolvem clãs sempre causam barulho, desde o primeiro livro da Bíblia. Não por acaso, há uma parte do Gênesis que conta o assassinato de Abel por seu irmão Caim. Deixo de lado o detalhe de que Adão e Eva foram os únicos humanos criados por Deus, seus dois filhos eram do sexo masculino – e mesmo assim, a humanidade floresceu em franco assanhamento.  Prefiro me lembrar de uma aula na faculdade de Jornalismo sobre títulos, na qual o professor listava exemplos absurdos e reais. O campeão pra mim foi “Matou a mãe sem motivo”. Na época, eu não sabia que era possível ir ao cinema.

Autor:

Dramaturgo, autor-roteirista de novelas, cronista, jornalista. Paulistano.

Um comentário em “Ninguém foi ao cinema

  1. Seria necessária uma enciclopédia gigante para dar conta da violência doméstica, envolvendo parentes de diversos graus, só para ficarmos neste segmento. A ficção policial acaba sendo menos violenta que a vida real, além de trazer a investigação e a prisão do criminoso, por isso sou fã há quase 50 anos.

    Voce lembrou do crime “Matou a mãe sem motivo”, que me lembrou: “serviu-lhe a morte num prato de arroz”, de 07/07/15 e “Matou a mulher e a comeu com arroz”, de 06/12/19, lembra?

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