Memorial da Covid: Três Meses

Fabrício, o endocrinologista, me viu na recepção do consultório e pareceu sorrir (estávamos de máscara, obviamente): “Você merece um abraço”, disse ele. Me deixei abraçar porque entendi o recado. A última vez que nos vimos, no comecinho de fevereiro, eu exibia no corpo as marcas da Covid-19. Três meses depois, a história se desenha outra.

Nos últimos noventa dias, as sessões de fisioterapia foram quase diárias e a ideia de caminhar pelas ruas do bairro beirava a mais lisérgica utopia. Presente do Arnaldo, uma cadeira de plástico me aguardava toda manhã para o banho. O oxímetro já se tornara uma extensão de meus dedos. Aos poucos, muito lentamente, esses objetos foram sendo postos de lado e as fronteiras do mundo começaram a se alargar. Subir a pé até a Paulista já não era delírio.

O primeiro apetrecho a sair da lista foi o cateter de oxigênio. A título experimental e por orientação médica, tentei dormir algumas horas sem ele. Dormi uma noite inteira, feito um anjo. Veio a segunda noite. E outra. Antes que o concentrador de ar tivesse o mesmo destino das bicicletas ergométricas que acabam virando cabide, devolvi tudo para o home care. Faltou uma cerimônia de adeus.

Nesta altura, a cadeira perto do chuveiro foi se tornando obsoleta. Começava a experiência do banho. Nas primeiras duas ou três vezes, as pernas fraquejaram, ameaçando não dar conta de sustentar o corpo sob a água quente. As mãos tentavam se entender com o chuveirinho, o xampu e o sabonete. Mas correu tudo bem. O primeiro banho sob uma ducha de verdade é uma volta olímpica ao redor de você mesmo. Olímpica e vitoriosa.

Talvez o mais difícil nesses meses tenha sido colocar a paciência em prática. Não se pode ter pressa durante a recuperação de doença alguma, mas a Covid tem mania de gincana: sempre aparece um novo desafio pra encarar. O fôlego está ótimo, mas do nada uma rateada faz você lembrar dos estragos que o vírus deixou no seu corpo.

Não dá pra ser otimista em tempo integral, nem tem cabimento. Nas conversas, paira o medo dos efeitos colaterais inesperados – e que só dão as caras quando está todo mundo de bem com a vida. Músculos ainda entorpecidos, batimentos cardíacos sob vigilância, pulmões meia-boca e a memória, bom, que é que tem mesmo a memória?

Tudo é motivo de susto. Você acorda de madrugada com a respiração curta e uma sensação estranha na boca: a Covid voltou! Calma. Espera. Vai no banheiro, toma uma água. Viu? Era a umidade do ar baixíssima em São Paulo. Volta a dormir, criatura.

Até agora, o balanço do primeiro trimestre é positivo. Recebi autorização para trabalhar. Posso também voltar às atividades físicas regulares na academia – “Recomeçando totalmente do zero”, alerta o pneumologista. É ele, o bom Ricardo, quem vai me lembrar ao longo do próximo semestre que a luta não acabou. Tenho exames periódicos a fazer e apresentar. Antes de dezembro, não posso me considerar de alta. Mas estando na lista dos vivos já me sinto no lucro.

Memorial da Covid: Alta!

Eu já me sentia móveis & utensílios da UTI quando o médico acenou com a luz tênue de uma alta para o quarto. Trata-se de uma “promoção” dada a quem se recupera bem. Aparentemente, eu gabaritava. Tudo ia depender de uma tomografia do tórax. Por fora, encarei a notícia com elegância nórdica. Por dentro, comecei a espalhar bandeirinhas coloridas nas ideias.

Fiz o exame. Imagine a decepção quando os médicos disseram ter encontrado várias marcas da Covid nos meus pulmões. Boa parte estava em processo de cicatrização, o que era ótimo sinal, mas o corpo ainda exigia cuidados. Portanto, nada de quarto.

Antes do médico entrar na UTI, eu acabara de instalar a máscara bipap, um respirador mecânico que melhora a oxigenação, mas impede o doente de usar óculos e falar. Uma delícia. Pra distrair, coloquei a TV num desses programas de vida selvagem. No episódio daquele dia, uma girafa adulta era cercada por um bando de leões nos cafundós da África. Bem nessa hora, o médico veio me dar a notícia.

Meu desapontamento dialogou perfeitamente com a girafa caindo sob as patadas e mordidas da leãozada. A preocupação agora era saber se a tal sequela era tratável. Era. Ufa! Eu teria melhor sorte que a girafa. O jeito era ficar mais um tempo.

Em poucos dias, numa sexta-feira, veio a notícia sonhada. No sábado, eu seria transferido para o quarto. Era o fim da mamata de ter cinquenta aparelhos conectados ao corpo e de ver um enfermeiro diferente a cada cinco minutos futucando trechos insondáveis da minha anatomia.

Na hora da mudança, a bordo de uma cadeira de rodas pilotada por um técnico de enfermagem, percorri um verdadeiro labirinto – por que os hospitais modernos são assim, cheios de corredores sem sentido? É a técnica de construção do puxadinho, claro.

Cheguei ao apartamento 305, crente que seria uma visitinha rápida. Ilusão. Seguiram-se 15 longos dias – ou 360 horas, sendo que as primeiras 48 foram marcadas pela insegurança: cadê os enfermeiros que não me davam mais atenção?

Devagar, fui pegando a ideia. Havia que se esforçar para ganhar as ruas. E dá-lhe fisioterapia, duas vezes por dia. Dá-lhe exercícios respiratórios, para colocar os pulmões no bom caminho. Dá-lhe comida, também. Nos dias de UTI, eu tinha perdido 10 quilos de massa magra e me sentia sem forças para nada. As pernas, coitadas, pareciam garotas-propaganda dos Médicos sem Fronteira. A parte da comilança foi boa, não vou reclamar.

Criei uma rotina dentro do quarto. Os passos claudicantes dos primeiros dias, praticamente pendurado num andador, deram espaço a pequenas voltas ao redor da cama – e sem o auxiliar ortopédico. Logo conquistei o corredor! Com medo que eu caísse, uma das fisios insistia em me segurar pelo braço, mas eu fechei a cara, emburrado. Ela me deu espaço e eu não caí. Só não consegui acabar com a mania dela de usar diminutivo pra tudo: bracinho, pezinho, arzinho, janelinha. Inferninho.

Enfim, estava tudo nos eixos, o mundo em sossego, quando o médico decidiu me dar alta. Se eu preferisse, podia ser até no mesmo dia, uma sexta-feira. Preferi que fosse no sábado. “Vou curtir mais um café da manhã do hospital”, brinquei. Na real, precisava instalar equipamentos de oxigênio no apartamento, pois eu ainda dormia acoplado a um cateter. 

Quase me arrependi de passar mais uma noite internado. Toda a calma budista que eu demonstrara nos 35 dias anteriores, mesmo em momentos tenebrosos, evaporou com o aviso da alta. O relógio parou de trabalhar, nada mais prestava, o colchão era incômodo, o banho, o remédio, o tempero… Precisei dar um puxão de orelha em mim mesmo pra criar juízo.

A alta estava marcada para as 10 horas. Às 9 eu já estava pronto, sentadinho no sofá. Bastava que os paramédicos viessem me buscar – a ambulância foi exigência do médico. Eles vieram às 13h30. A essa altura, eu era quase a personagem da menina possuída do filme O Exorcista: não girei o pescoço, não vomitei verde nem apelei pro crucifixo, mas recuperei palavrões há muito tempo arquivados.

Às 14 horas do dia 5 de fevereiro, deitado numa maca, tornei a sentir o sol batendo no rosto. Os funcionários do condomínio me aplaudiram e eu revi a madeira envernizada do elevador. Pensei que fosse me emocionar ao entrar em casa, mas não. Olhei para tudo com a alegria calma de quem está de volta ao território que sabe ser seu.

A luta ainda não acabou. A cada dia, a caminhada ganha uns metros e o cateter de oxigênio não precisou mais ser usado. Mas essa doença deixa sequelas nas mais diversas partes do nosso corpo. Algumas só aparecem tempos depois, é preciso ficar sempre atento. Mas se eu não entreguei os pontos no hospital, imagine em meu cafofo.

Memorial da Covid: Quase

O lado bom das situações muito graves é que dificilmente você, no olho do furacão, consegue avaliar a dimensão da gravidade. A ficha demora a cair. No meu caso, ela foi deslizando, esfarelada, como se eu não quisesse entender o que havia rolado comigo na UTI. Mas uma hora ou outra o Tico conversa com o Teco e você se esborracha na real: “Mano, eu quase bati as botas!”.

O advérbio de intensidade quase cumpre função essencial na frase. Significa que eu venci a batalha. Bati o pênalti e corri pra defender. Dei a volta por cima. E olha que logo depois de sair da intubação eu juraria que tinha apenas dormido uns dias, mais nada.

As pulgas começaram a se instalar atrás da orelha quando médicos, enfermeiros e até funcionárias da limpeza comemoravam meu “retorno”, como se eu tivesse andado muito longe. Era reação de quem não apostava tudo na minha volta. Esquisito.

Dias depois de ter alta da UTI, já hospedado no quarto 305, uma enfermeira boa-praça comentou que tinha visto os exames dos meus pulmões. A coisa tinha sido séria. E eu: “Séria quanto?”. E ela: “Cinquenta por cento dos pulmões comprometidos”. Eu, ainda surfando na onda da alienação: “Isso é muito?”. Ela arregalou os olhos: “Ô, se é”. Decidi tirar a dúvida com o médico. Ele não economizou: “Você quase morreu, cara”.

Graças às vacinas, à medicina, às orações (de igrejas evangélicas e católicas a terreiros de matriz africana, de mesas brancas a oratórios particulares, foi uma corrente pra frente, e não tenho nem como agradecer cada um que torceu), estou por aqui. Agradeço também ao meu corpo, que conseguiu cavucar forças e resistir. Eis-me aqui, em pleno processo de lentíssima recuperação.

Parêntesis. Há alguns dias, duas ou três pessoas se queixaram de minha insistência no tema da Covid. “Bola pra frente”, disseram. Só que nem sempre dá pra fugir. Uns viram a página e fazem de conta que nada aconteceu. Mas eu não sou desses. Fecho o parêntesis.

Aproveito o dom (ou talento, como quer a imodéstia) de lidar com palavras e dou aos meus textos a missão de exorcismo. Algo parecido com arrancar todos os livros da estante e, pacientemente, recolocá-los em ordem nas prateleiras. É um processo, nem melhor nem pior que os outros. É apenas o meu processo.

Não é um método fácil, acreditem. Depois da conversa com o médico, consciente do risco real que corri, baixou em mim uma morbidez involuntária. Passei a me sentir como o personagem de James Stewart em A Felicidade Não se Compra, de Frank Capra. No filme, lindo, de 1946, um anjo resolve mostrar a Stewart como seria a vida das pessoas se ele não tivesse passado por elas. 

Cheguei a me sentir um pouco assim. Entrava no Facebook e imaginava fotos minhas em posts chorosos, RIPs de montão… E se minha volta ao lar tivesse sido apenas uma ilusão? Eram pensamentos muito insalubres, não combinavam comigo. 

Foram dias doentios, eu sei, mas passaram. E eu senti exatamente o momento do clique. Foi quando obtive autorização pra tomar a dose de reforço – há um prazo de espera obrigatório para quem contraiu a doença. O instante em que a agulha entrou no meu braço direito marcou a libertação. Sim, ela veio. Melhor dizendo, está a caminho.

Quase um mês depois da alta, instalado no conforto de casa, ainda não consigo sair à rua como costumava fazer. Já ando uns cento e tantos metros pela calçada, parando de vez em quando para respirar e expirar dez vezes, como ensinou a fisioterapeuta. Paciência. Demora, mas chega. Nada na recuperação da Covid é rápido – nem o otimismo.

Memorial da Covid: Sentidos

A enfermeira avisou que eu poderia receber produtos de higiene pessoal na UTI e eu vibrei. Nem me passou pela cabeça que aquilo tinha cara de ser um prêmio de consolação para quem precisaria esticar a permanência. Mais urgente era fazer a lista do que eu considerava essencial para meus cuidados.

E eu queria apenas tudo: creme de barbear, pós-barba, xampu, desodorante. Era quase um combo do Boticário. Ah, e sabonete, também, claro. Mas o da Phebo, bem antigo, perfumado. Dúvida: será que pode citar marcas? Claro que pode, o blog é meu.

No dia seguinte, os produtos chegaram, enviados pelo Wander, e eu senti a mesma alegria de quando morava na Europa, em 1982, e o carteiro trazia carta do Brasil. Assim como na juventude, abri a encomenda na hora. Pra que esperar? Só que agora eu abria a encomenda mais lentamente, pra economizar oxigênio.

Eu tinha acabado de tomar banho – aquele banho de gato, muito popular nas UTIs – e quis logo exorcizar o cheiro de hora do rush. Abri o desodorante. O jato perfumado tornou-se naquele instante a coisa mais agradável que minhas narinas já haviam sentido na vida. Deixando o exagero de lado, foi muito bom descobrir que a Covid não tinha afetado meu olfato.

Sensação parecida – porém mais discreta – foi causada pelo xampu  e pelo creme de barbear. Eram odores familiares que voltavam em meio ao cheiro de nada dos equipamentos médicos. Tal e qual o aroma de um tempero, sentido por acaso na rua, que nos devolve à cozinha de nossa infância.

Aos poucos, os sentidos retomavam a posse do corpo. De leve, um pedacinho por vez. O sabor vinha depois de cada visita da nutricionista, que avaliava minha capacidade de engolir e respirar sem parecer que estava sofrendo um infarto. É bizarro: você engole com um estetoscópio colado à garganta. Cada vez que era aprovado, melhorava a qualidade da boia. Uma espécie de troféu.

A fruta vinha em forma de papinha, a carne vinha em forma de papinha, o arroz idem. Qualquer coisa que pusessem na frente da cozinheira virava purê. Eu era como um bebezão Johnson, deslocado no tempo e no espaço. Teve um dia que o tal teste foi com um pão francês! Nem era crocante como eu gosto, Veio sem manteiga, mas – meus deuses – era um pão francês. Tive de me conter pra não beijar a mão que me trouxe a iguaria. Faltou o café quente, mas não dava pra exigir tudo.

O reforço na visão viria uns dias depois, já no quarto, de alta da UTI. Recebi um pacote de roupas – minhas roupas, minhas havaianas! – para passar os dias internado. Camisetas, calções e cuecas se uniam para dizer adeus à famigerada camisola de paciente. É impossível manter o chiquê vestindo aquela bata horrorosa.

Saber que havia roupas minhas no armário, que eu poderia até escolher, era a devolução parcial de minha própria humanidade. Eu existia, tinha gosto pessoal e podia exercê-lo. Escolher a cueca do dia parece pouco, mas dá um alento danado. Você deixa de ser para tornar-se um doente. O mal se torna passageiro. Um verbo faz toda a diferença.

Os dias de hospital são assim, você disputa uma gincana com um concorrente invisível e imprevisível. Boa parte do que acontece no seu corpo depende dos médicos, dos remédios, das rezas – de qualquer coisa, menos de você mesmo. Sua missão é fazer o que mandam da melhor maneira possível. E, dizem, manter o astral lá em cima. Teorias…

Dos cinco sentidos, o tato é o que dá mais perdidos no corpo. Um mês depois de extubado, já em casa, um pedaço da minha perna direita insiste em se sentir anestesiada. É só um pedaço mesmo, na lateral da coxa, que não chega a me fazer mancar. Conforme volto a andar pela casa, a dormência dá sinais de que está diminuindo. É um truque do corpo pra que eu não esqueça dos dias tenebrosos. Como se isso fosse possível.

Memorial da Covid: Visita

“Hoje é dia de visita / Vem aí meu grande amor”. Chico Buarque, O VELHO FRANCISCO

Dias depois do meu surto, Lucilene, a psicóloga da UTI veio me ver, irradiando simpatia. Contou que os médicos concluíram que eu já estava merecendo – ou precisando de – uma visita. O coração veio à boca, qualquer um pode imaginar. Ao fim de 15 dias de isolamento, que mais pareciam seis meses, eu me sentia o velhinho de asilo, que nunca é procurado por alguém e aparece chorando nas reportagens emotivas. 

Lucilene alertou:  não seria uma visita comum. Wanderley – ele é que viria – devia usar todos os equipamentos de E.P.I. disponíveis no mercado: luvas, máscara, gorrinho e aquele avental largo, que deixa qualquer um com formato da antiga embalagem de leite tipo C. Um segundo de distração e eu não conseguiria distinguir meu visitante exclusivo de qualquer um dos incontáveis enfermeiros, técnicos e médicos que entravam no meu quarto sem fazer cerimônia.

Eu não estava em condições de reclamar. Preferi não contar pra ela que, por Whatsapp, Wander tinha preparado meu espírito sobre uma possível visita. Só comentei que seria legal se tivessem mantido sigilo. Lucilene balançou a cabeça. “No começo, a gente organizava visitas surpresa. Mas um paciente se assustou ao ver os parentes chegando. Achou que nós tínhamos liberado geral porque ele estava morrendo.”

Compreendi o colega. Depois de dias e dias trancado com aparelhos barulhentos, sendo virado do avesso por qualquer um que abra a porta do quarto, comendo papinhas desconcertantes, do nada, aparece um “ente querido”? Aí tem coisa. Melhor combinar com os russos.

No dia da visita, na hora marcada, eu estava prontinho, lençol limpo, barba feita, dentes escovados, ansiedade lá em cima. Lembrava o menino que mal pregava os olhos na véspera da viagem à praia – sim, sempre fui desses. 

Finalmente, Wander chegou e eu fiquei sem saber o que fazer. Era só pra se se olhar? Você abre o maior sorriso, mas está de máscara, só aparecem os olhos enrugados… Dava vontade de chorar, mas seria perder minutos preciosos de um tempo que poderia ser curto. Eu me sentia a própria múmia saindo da pirâmide, mas – tirando a voz embargada – mantive a classe.

Aí, baixou em mim o espírito da Emília, no momento em que a boneca criada pelo Monteiro Lobato engolia a pílula falante do Doutor Caramujo. Devo ter matraqueado uma hora praticamente sem parar (o que me deixou meio zureta por uns dois dias). 

Era tudo pra não pensar na emoção de estar voltando à vida. Até então, tudo o que eu sabia era que tinha ficado uns dias intubado, mas que estava apresentando melhoras. Os detalhes só viriam dias depois, formando o quadro do pesadelo.

No dia da visita, fiz planos de viagem! Uns dias em Americana, outros em Piracaia. Uma ida até Aparecida, pagar promessa de ateu. Até planos pro carnaval eu fiz: o Egito seria uma opção ótima, não fossem os protocolos sanitários. Egito! Rio comigo mesmo ao lembrar. Seguindo tratamento em homecare, só dá pra tentar levantar sozinho da cadeira ou caminhar até a porta do apartamento. Até falar ao telefone é difícil. 

Na visita daquele dia (que eu não sei qual era, no calendário), houve muitos momentos de silêncio. Tal qual no poema de Adélia Prado, em que um casal limpa peixes recém-pescados sem precisar conversar, a ausência de palavras muitas vezes é a prova da confiança que dispensa redes formais de proteção. 

Milhares de doentes não tiveram a oportunidade de ver um rosto querido ao vivo. Enfrentaram sozinhos a internação em UTIs, a intubação, os pesadelos e a recuperação lentíssima, quando houve. Eu, que nem muito religioso sou, acendi uma vela imaginária pra todos eles. 

Naquela noite, dormi bem, sem surtos nem escândalos. E sonhei que tinha recebido alta da UTI.

Memorial da Covid: Delírios

Eu devia ter desconfiado. A iluminação de penumbra não combinava com o quarto da UTI. Se aquilo era pra ser uma festa, faltavam música e convidados. E era mesmo uma festa. Eu tinha o que comemorar. Saíra da intubação sem maiores danos e poderia dormir de mãos desamarradas. Mas, diante daquele quarto mal iluminado, tudo o que eu queria mesmo era me sentar na poltrona e esperar.

Não tinha como fazer isso sem ajuda dos enfermeiros. As pernas não sustentavam o corpo, isso eu lembrava. Somou-se à vontade de mudar de lugar no quarto a imperial necessidade de fazer xixi. Depois da doença, a bexiga conquistou uma independência surpreendente e uma arrogância antipática. Tudo dela se tornou urgente.

Os convidados não chegavam e eu tinha cada vez mais pressa. Fios me prendiam a vários aparelhos – eu acordava várias vezes à noite sentindo que tinha alguém no quarto. Eram eles, os aparelhos, me vigiando. Uma sonda entrava pelo nariz e providenciava a alimentação. Havia outras sondas, encarregadas de expelir o desnecessário.

A pressa me consumia. Alguém falou pra eu me acalmar. Quem? Não havia ninguém por perto, eu precisava de ajuda. Não segurei mais o xixi. Inundei o quarto. Ou acho que inundei, havia uma sonda nos países baixos. Alguém repetia: fica calmo.

Eu estava calmo. Só os fios é que incomodavam. Arranquei um, a máquina apitou. Arranquei outro, soou mais um alarme. A sonda da alimentação! Como é que tira isso? Arranquei a sonda. Quase desisti, porque doía muito. Mas não parei. Só desisti das sondas, digamos, mais íntimas.

Pisquei os olhos e me vi recostado na cama. Enfermeiras passavam pelos lados, o médico conversava comigo. Se eu me comportasse, ele não me amarraria. Prometia? Estou prometendo isso há dois anos, eu disse. Ele se admirou: dois anos? Sim. Estive aqui há dois anos, mas não lembro direito. Eu dizia isso com a clara sensação de estar falando uma batatada.

Pisquei novamente, o sol entrava pela janelinha do quarto. As enfermeiras me olhavam desconfiadas. Sorri, fofo, tentando descobrir comigo mesmo o que tinha acontecido.

Outro médico veio me ver. Aprontou ontem, hein? Opa! Isso tudo que eu contei aí em cima, pelo jeito, aconteceu mesmo. Mas como? Eu estava tranquilo. Lembro disso. Só disso. O médico diz que volta e meia um paciente surta dentro da UTI. É como se fosse uma overdose de drogas. “Como se fosse”, não. É mesmo.  Você é bombardeado por mil remédios, anti-isso, anti-aquilo, medicamentos pesados, mas fundamentais pra te arrancar do bico do corvo. Tudo junto e misturado, o organismo enfraquecido, o ambiente árido e tenso da UTI…  O resultado é o surto.

Eu nunca tinha ouvido falar disso. Vivi minha Noite do Terror particular num Playcenter macabro. Tal qual na novela O Médico e o Monstro, dormi Doutor Jekyll, acordei Mister Hyde. Deitei bossa nova e levantei Lobão, tendo de lidar no dia seguinte com uma incontrolável crise de soluços.

“Isso acontece”, diziam os médicos e enfermeiros. Não servia de consolo. Passei os dias seguintes com a mesma sensação de quando se enfia o pé numa jaca monumental e a memória se recusa a colaborar na reconstrução do passado. A gente sabe que o mundo vai voltar aos eixos, mas e a vergonha de ter dado vexame? Se o que a memória libera é a imagem de um sujeito de bata mijada arrancando uma sonda de alimentação, não quero nem saber o que se esconde na deepweb do cérebro. Aquela noite virou um puzzle de 3 mil peças – e algumas delas vieram com defeito.

Alertados pelo meu surto, os médicos discutem o que fazer. Vence a proposta da psicóloga: eu preciso receber uma visita. Semana que vem tem mais.

Memorial da Covid: Elegância

Em 1934, Cole Porter já estava a caminho de ser um dos mais importantes compositores da música popular norte-americana. Numa festa em Nova York, animado por uns gorós suplementares, compôs a história de uma socialite extremamente ligada às normas de etiqueta. Convidada para um almoço, Miss Otis envia uma desculpa. “Lamento não poder comparecer ao almoço desta tarde. Hoje cedo, matei meu amante quando ele ameaçou me abandonar. Por vingança, seus amigos vão me linchar no mesmo horário do nosso encontro.”

Existem inúmeras versões da música. As primeiras, ainda nos anos 1930, reproduzem um espantoso espírito folgazão. É o caso da cantora Alberta Hunter, que trocara os Estados Unidos pela Europa, fazendo muito sucesso ao lado de sua conterrânea e algo-mais Josephine Baker. Foi preciso Ella Fitzgerald lançar nos anos 1950 o songbook de Porter em sua voz inacreditável para que as pessoas entendessem Miss Otis Regrets como uma canção de amor infeliz. (Como bônus, coloquei no fim do texto as versões de Ella e de Alberta).

Adoro a Ella, mas é Alberta que não para de cantar toda serelepe na penumbra do quarto da UTI. Espera. Eu ainda estou na UTI. Ao meu lado, o médico fala alguma coisa, mas as únicas palavras que fazem sentido são as de Cole Porter, Miss Otis Regrets… Preciso focar no médico. “Suas mãos estão amarradas” – é verdade, estou de mãos literalmente atadas! “Para não arrancar as sondas…”- que sonda, Senhor? “Você foi extubado…” – Meu Deus, eles me intubaram e eu nem me dei conta.

Quantos dias eu fiquei intubado? Acho que o médico falou, mas é como num sonho onde nada faz muito sentido. De repente, um frio na espinha. Eu não desmarquei o podólogo! É por isso que Alberta Hunter canta Miss Otis Regrets toda malandrinha. Eu sou Miss Otis e preciso desmarcar o podólogo!

Peço o tablet. Pesa uns 8 quilos. Desisto. Cadê o celular? Por que as letras não entram em acordo com meus dedos? Nunca mais vou escrever nada nesse negócio. No dia seguinte, consigo achar o podólogo e o resultado faria Cole Porter gargalhar sem drinques. “Não vou poder ir à sessão porque peguei Covid”- Mas você está bem? – Tô na UTI. Fui intubado. Miss Otis lamenta…

O podólogo pergunta quantos dias fiquei fora do ar. Não faço a mais pálida. Meu sobrinho quer saber como eram os dias de intubado e eu não tenho resposta. Foram não-dias. Durante quanto tempo eu não existi? Um médico me esclarece: foram cinco dias. Isso dá 120 horas de buraco negro existencial. Nem foi muito, dizem as enfermeiras.

Luciano, o médico gaúcho gremista simpático, explica que a intubação era necessária para fortalecer os pulmões. O paciente fica de bruços – ou pronado, como eles dizem no grupo da UTI – e recebe medicamento até dizer chega. A batinha hospitalar, a bunda ao léu, sondas explorando a face oculta de nossas luas. Pensando bem, estar fora do ar é uma dádiva.

Não sei que processo mental me levou a transformar a UTI numa espécie de showroom de luminárias design. Nós, os intubados ficávamos pendurados pelo teto, pênseis. Enfermeiras e auxiliares circulavam entre nós, dando tapinhas marotos nas bundas mais rechonchudas. Isso nos fazia girar e confundia nosso frágil senso de realidade.

Era engraçado imaginar a cena. Até que o cérebro retoma seu controle. “Isso nunca aconteceu!” O que realmente teria ocorrido? Acho que nunca saberei de fato. Mas, pelo menos, os médicos me deixam ficar de mãos desamarradas. Prenúncio de uma noite tranquila na UTI. Só que não.

Alberta Hunter: https://www.youtube.com/watch?v=n1yxtsIlRcg

Ella Fitzgerald: https://www.youtube.com/watch?v=PVnAQcRIkZo

Memorial da Covid: Intimidades

“Veio-lhe um amor desesperado por tudo.” José Lins do Rego, FOGO MORTO

No último 29 de dezembro, um teste de farmácia brochou qualquer projeto etílico para o meu Réveillon. Após dois anos de mortes de irmão, primos, amigos e ídolos, baixei a guarda. Não deu outra. O coronavírus me catou.

Nesses momentos, é inevitável que brote em nós um Sherlock de Corona, carregado de preconceitos que, você jurou na última assembleia, estavam sepultados. Pode ter sido num almoço no Ipiranga, num happy hour nos Jardins, pouco importa. Não existe camarote vip pra contaminação. O fato inegável é que, se deu match, tem que aceitar sem pensar no pedigree da cepa. Pela facilidade, devo ter pego a ômicron. Assim espero. Só faltava sair por aí usando uma variante fora de moda. “Meu Deus, isso é tão Delta!”

Depois de uma noitada movida a água, meu primeiro despertar de 2022 foi uma ressacona digna das piores bebedeiras (que também já registrei no passado, mas deixa quieto).

Antes de bater meio-dia, vim para o Hospital Samaritano, no bairro de Higienópolis. Devia estar rolando promoção de ano novo. Mal olharam pra minha cara, me deram up grade: direto pra Unidade de Terapia Intensiva.

Mesmo batizado com duas doses de vacina, carrego um quadro histórico e agressivo de diabetes familiar. Às vezes, você não tem a impressão que todos os seus amigos herdaram de um tio solteiro uma quitinete em Santa Cecília? Pois pode me tirar da lista. No caso da minha família, o pessoal se conformou em herdar e transmitir só patrimônio imaterial: diabetes, pressão alta e problemas ósseos variados.

Como eu nunca tinha ficado mais que algumas horas internado, tudo era novidade. Meu irmão tinha mais pontos corridos no quesito. Lembro dele comentar que chato mesmo eram os três primeiros banhos. Do quarto em diante, prevalecia o ninguém é de ninguém.

Acontece muita coisa numa internação e a maioria delas ninguém comenta porque acha normal. Não é! Internar-se é repetir de ano na Escolinha do Professor Raimundo. A toda hora rola um ensinamento.

A primeira lição vem com 24 horas de internado: decretado o fim da intimidade.

Começa por não poder sair da cama nem mesmo para fazer xixi. Tem que descarregar a urina num vaso chamado papagaio. O nome é ridículo e  a interação homem-objeto-pênis nem sempre acontece daquele jeitinho gostoso. As primeiras tentativas são um fiasco. Você sempre acha que acabou três litros antes. E, não, não acabou.

Aí vem a questão do número 2. Sei de atores respeitadíssimos que ocupam o  palco para nele deixar um troféu fedorento – e diante da plateia surpresa. Eu não milito nessa área. Sempre adoto a discrição quando o assunto envolve fezes  – envolver, no caso, é uma imagem esquisita, eu sei, mas toca o barco.

Dá pra imaginar o embaraço de responder a gente que você nunca viu na vida sobre o funcionamento do seu intestino. O mundo vira uma interminável propaganda de Activia – na qual Ressecadão é o codinome do seu intestino. E é sempre importante valorizar a participação da auxiliar de enfermagem chegada às profecias: “Tem caso que precisa até operar!”

Outra pegadinha que todo novato de internação sempre cai: “A gente lava seu corpo, mas você lava suas partes íntimas, ok? Segura o paninho.” Talvez em outra existência, esse paninho venha a ter uma utilidade louca. Nessa, não rola. A missão dele ali é distrair sua mão. Você fica ali, escancarado feito frango de padaria, sentindo todo mundo mexer em suas intimidades, como se houvesse uma plateia. Muitas vezes, há. Ou você acha que há. E o paninho, na mão, de bobeira.

O roteiro de uma UTI é constantemente escrito pelo Stanley Kubrick e dirigido pelo Fellini – e vice-versa. Sobra muito tempo livre pra você pensar em, tipo assim, tudo. Será que deixou alguma conta fora do débito automático? Por que diabos não leu Em Busca do Tempo Perdido? Meu Deus, aquilo era uma cantada! E, pior: existindo vida além da morte, você terá que passar a eternidade de echarpe branca? Sim, em algum momento todos os orifícios se contraem e a indesejada das gentes sobrevoa o quarto.

Entre tantas pensatas, me veio o Vianices, colocado em modo de repouso desde o Natal. Comecei listando todas as possibilidades temáticas de crônicas. Há várias, acreditem. O grande barato de escrever um blog é registrar o que os olhos captam. E nesse janeiro inteiro, meus olhos só viram médicos, agulhas, enfermeiras, máscaras de oxigênio – e uma luta selvagem pela sobrevivência numa floresta onde tudo é ameaça e você não tem noção de quais armas dispõe. Se é que dispõe…

Resolvi, sem perguntar a ninguém, cronicar meus dias de UTI. Feito juiz do STF, decidi de forma monocrática que, ao sair do hospital, colocaria o plano em ação. Mas aqui tem noveleiro canceriano, porra! E se não desse tempo? E se os bad guys vencessem? Impetrei recurso e decidi em favor de retomar o blog ainda de dentro do hospital.

Voltei à lista de possíveis temas de crônicas. Tinha coisa boa ali! Aí abri os olhos e descobri que cinco dias de minha vida tinham virado fumaça, escoados por uma intubação.

Semana que vem tem mais. Continuo internado.

Uma Páscoa qualquer

Eu era bem criança, tinha uns 6 anos, quando conheci a Páscoa pessoalmente. Ela morava em frente à casa para onde mudamos pouco antes de meu irmão nascer. Era uma rua de terra batida e a luz elétrica ainda não chegara ao bairro. À noite, entre velas, fogueiras e vagalumes, trocávamos ideias com a vizinhança. Nasceu daí a grande amizade da Páscoa com a minha mãe.

A Páscoa também tinha mãe. Era dona Hermínia – ou Ermínia, nunca soube a grafia do nome dela-, famosa por ser benzedeira de mão cheia. Dor de cabeça, estômago virado, febre, mau jeito, olho gordo, não havia moléstia que dona Hermínia (ou Ermínia) não desse conta. Até hoje, quando sinto o perfume de arruda, me vejo sentadinho na casa dela, recebendo gotas de água benta na cabeça entre murmúrios de oração.

Páscoa foi a primeira mulher que vi usando peruca fora da TV. Até então, os cabelos femininos do meu cotidiano eram passados a ferro, como os das minhas primas,  ou trincavam de laquê, como os da minha madrinha. Páscoa, não. Páscoa usava perucas, mas não por vaidade, longe disso.

Anos antes de nos conhecermos, ela era operária de uma tecelagem que garantia muitos empregos no Jaçanã. Certo dia, um tear prendeu os cabelos da mocinha e arrancou boa parte de seu couro cabeludo. Por isso, a peruca, que Páscoa só retirava no quarto, longe de todos. Minha mãe era das raras pessoas autorizadas a entrar nesses momentos, mas jamais falou algo a respeito.

Nunca mais soube da Páscoa. Dela ficaram alguns traços, a lembrança da peruca com franja, a silhueta magra, a voz discreta, a sina de solteirona. Ela ingressou naquele universo de pessoas que vão se apagando das nossas vidas, pelas mais diversas e involuntárias razões. Um muda de bairro e nas visitas esporádicas nunca procura a antiga vizinha. Quem fazia a ponte entre nós morre e as informações se tornam mais escassas. Vão sumindo, sumindo, até se apagarem de vez.

São figuras da nossa vida que a chamada grande História não registra. Não há quem guarde delas sequer uma imagem. Às vezes sobra uma foto que vai perdendo a identificação ano após ano. “Quem é esta ao lado da vovó?” Ninguém lembra. Os filmes caseiros também não garantem a sobrevida da memória. No fim das contas, somos um acúmulo de figuras diluídas, por mais queridas que sejam.

Nessas horas, acho estimulante ter o dom de escrever. O dom e a vontade, claro. Com os caquinhos desconjuntados da memória acabo preservando figuras sobre as quais não teria mais onde pesquisar. Sem provas reais, baseado apenas na fumaça das lembranças, caminho para me tornar um memorialista da pequenice.