Memória de alecrim

Quando cheguei pela primeira vez em Portugal, em junho de 1981, a Revolução dos Cravos tinha pouco mais de sete anos. Da mesma maneira que, hoje, dividimos a vida em antes e depois da Covid, no comecinho dos anos 1980, os portugueses criaram seu pré e pós particular. “Antes do 25 d’abril ninguém me pisava os pés no metro”, reclamou uma senhora lisboeta ao tomar o metrô em pleno horário de rush. Ouvi esse comentário ao vivo. Voltemos aos cravos, na semana em que o fim dos cocorocas salazaristas completa 50 anos, ameaçado pelo retorno da direita.

Em abril de 1974, no alto dos meus 14 anos, eu tinha de Portugal umas informações muito superficiais – a bem dizer, nenhuma. Só comecei a ligar lé com cré quando fui trabalhar de menor aprendiz no Banco do Brasil e passei a conviver com universitários politizados (uma espécie muito em voga naquela época). Quando chegou a notícia que o ditador espanhol Francisco Franco morrera, em novembro de 1975,  eu comia pão com manteiga e café ao lado de meus colegas (o banco servia um lanchinho antes de começar o expediente). Aderi à comemoração.

Em 1981, jornalista recém-formado, eu era um pós-adolescente com larga experiência nas lutas da esquerda: já tinha corrido da polícia numa passeata no bairro da Penha (jogaram bombas de gás lacrimogêneo e tudo!), fazia teatro militante à sombra da Teologia da Libertação e lia livros de Marx e Engels devidamente encapados com papel pardo pra ninguém ver na rua. Nada que me preparasse para o choque de realidade em Portugal.

De 1976 em diante, aprendi umas coisinhas. O hino revolucionário, por exemplo, foi Grândola, Vila Morena. Quem me apresentou a marcha foi Nara Leão. Podemos dizer que apresentou pessoalmente, pois em julho de 1977, eu me dei de presente de aniversário um LP duplo, A Arte de…, onde havia a música do português Zeca Afonso, usada como senha para deflagrar a revolução. O disco tocava direto em minha vitrola Zilomag com a voz suave de Nara e um arranjo de pés marchando. Descobri, anos depois, que era o mesmo arranjo da gravação original de Zeca.

Não cheguei em Portugal desavisado, mas hoje em dia não lembro o motivo de ter havido, em 1981, uma grande manifestação das esquerdas lusitanas. A Avenida da Liberdade, no coração de Lisboa, foi tomada por uma multidão. O mais marcante de tudo, pra mim, foi estar em frente à sede do Partido Comunista Português e ver um mar de bandeiras com a foice e o martelo estampados.

Primeira reação: pavor. A polícia vai descer o cacete! Não desceu. Segunda reação: emoção. Foi a mais intensa sensação de liberdade política na minha vida até então. Quer dizer que era mesmo possível ser comunista, socialista – eu era meio trotskista – sem ser trancafiado numa cela? Era. Era bom? Era maravilhoso. Não apenas pela esquerda, mas pela liberdade saboreada de maneira diferente por mim e pelos jovens portugueses. Era como se, contemporâneos, aprendêssemos juntos a delícia de poder se manifestar.

Além das grandes questões filosóficas e existenciais, a ausência de liberdade embute detalhes comezinhos, que quase nunca aparecem nos livros de História. Quer um exemplo? Em Portugal, o uso do isqueiro foi uma conquista do 25 de abril. Como o governo detinha o monopólio dos fósforos, os salazaristas proibiram o uso de isqueiros no país. Quem quisesse acender seu cigarro, que riscasse um palitinho ou seria preso. Preso!

O rock foi outra vitória da força jovem. Até 1974, era proibido escutar discos de Rolling Stones, Led Zeppelin, Deep Purple, Doors e outras bandas. Os LPs (ou vinis, como se diz hoje) não entravam no país, nem mesmo na bagagem dos turistas. Nada deveria tomar o lugar do fado, até que Rui Veloso atreveu-se a lançar em 1980 o LP Ar de Rock. No repertório, brilhava o primeiro rock’n roll luso, Chico Fininho – sobre um rapaz que fumava… bem, vocês imaginam.

A carreira de Rui seguiu firme, até que ele se decepcionou com os rumos políticos do país e decidiu se aposentar em 2015. Além dos rocks, Veloso marcou a cultura pop lusitana pela gastronomia, com o restaurante Dom Tonho, na beira do Rio Douro, no Porto. Lá, provei um dos melhores bacalhaus da minha existência. A boca enche d’água só de lembrar. Antes do 25 d’abril isso não seria possível.

Autor:

Dramaturgo, autor-roteirista de novelas, cronista, jornalista. Paulistano.

Deixe um comentário