O Fantasma do Avohai

Subitamente, você enxerga sua vida como um romance – escrito pelo Zé Ramalho, mas faltando aquele capricho na poesia. As frases e fases estão todas lá, encaixadas e muitas vezes sem fazer sentido. O jogo de palavras é perfeito, a sonoridade nos prende. Tentar entender não é a melhor opção. Só resta tocar em frente, torcendo para o último verso dar algum sentido a todo o resto.

O Brasil tornou-se um imenso chão de giz, de onde o grão-vizir sopra poeira em nossos olhos. Aqui, os quatro elementos entraram em uma acirrada batalha. A terra tremeu e deslizou ladeira abaixo. O fogo devorou florestas e cerrados. Consumiu-se o ar e acabou o oxigênio para os doentes de Manaus. E as águas, ah, as águas de março tomaram conta das ruas ainda em janeiro.

Foram cenas fortes de se ver nos telejornais: o asfalto virou um rio caudaloso, arrastando carros, barracas de feira, paredes, tetos, vidas. Uma das reportagens me prendeu mais, pois mostrou a revolta do Córrego da Paciência, na zona norte de São Paulo. Esse córrego tinha tudo a ver comigo, pois passa a 200 metros da casa onde vivi mais de 20 anos.

O Córrego da Paciência era “o rio que corre pela minha aldeia”. Assim como no poema de Fernando Pessoa, era um curso d`água sem origem nem destino certo. Uns diziam que desembocava em Guarulhos, outros no Tietê, vai saber. Não tinha barcos a navega-lo, nem corredeiras dignas de um rafting. Transportava, quando muito, cachorros inchados de afogamento – para espanto da molecada, que olhava a escatologia da natureza  como parte da vida.

Quase todo verão, chovia muito e o córrego perdia a paciência que lhe dava o nome. Inchava, expandia-se, alargava-se até a casa das gentes. Quantas vezes não fiquei no muro observando os meninos que brincavam de surfar nas águas barrentas descidas do corguinho? Fui um moleque protegidinho e cheio de inveja daqueles atrevidos, que se atiravam na pororoca urbana.

Em outras chuvas, não dava tempo pra sentimentos pouco cristãos. Tinha que ajudar os mais velhos a erguer os móveis e proteger tudo das águas que entravam em casa sem pedir licença. Uma vez, em especial, a água cruzou as soleiras e chegou a meio metro de altura! Minha mãe, que estava no começo da gravidez de um terceiro filho, teria perdido a criança de tanto pavor.

Não se falava dessas coisas pras crianças – mas lembro de ser levado a visitar minha mãe no hospital e contar que tinha morrido uma atriz num acidente de avião. Era a Leila Diniz, que eu nem conhecia, mas achei que tinha de contar. Minha mãe, pelo que lembro, não deu muita trela.

Nos anos que vivi ali, foi a enchente mais selvagem da minha rua. Para minha surpresa, a TV mostrou o rio que passava pela minha aldeia ainda na ativa. Nunca foi o Tejo nem o Pinheiros, mas continua lá, coitado, sem merecer ao menos um poeminha mequetrefe. Foi nas suas margens que perdi o medo das porteiras. Cruzei o rio e saí para conquistar os mundos possíveis. O olho cego sempre vagueia, procurando por um.

Autor:

Dramaturgo, autor-roteirista de novelas, cronista, jornalista. Paulistano.

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