Vergonha terceirizada

Por alguns instantes, um fotógrafo de cerimônias oficiais e uma secretária municipal da saúde colocaram a pequena Jupi, a 200 quilômetros do Recife, no noticiário nacional. Sem ligar para formalidades, ambos furaram alegremente a fila dos conterrâneos aptos a tomar a primeira dose da Coronavac que acabava de chegar à cidade.

Para mim, o caso ganhou contornos assustadores: com pai e mãe nascidos em Jupi, cheio de familiares espalhados pela região, tive medo de que um dos personagens dessa história fosse parente. Meu primo Edson, que mantém um grupo de WhatsApp com a galera de Jupi, checou e sossegou: nenhuma célula nos liga aos gérsons do Agreste. Já pensou que vergonha seria?

Com menos de 15 mil habitantes e apenas 62 anos de independência administrativa, Jupi tinha tudo para seguir sua rotina sem sobressaltos. Nem mesmo a vacinação contra a Covid seria tão grandiosa: no total, a cidade recebeu 136 unidades do imunizante, suficiente para 68 trabalhadores da saúde. Agora, apenas 66, graças à ação daqueles personagens.

 O estrago só não foi pior porque logo pipocaram por todo o país inúmeros casos de quem não se constrangeu em passar à frente dos outros, braço em riste, com direito a selfie registrando o mau-caratismo. Teve um prefeito, cínico, que pediu perdão a Deus por colocar a própria mulher à frente de todo mundo. Outro disse que furou a fila para estimular os conterrâneos a se vacinar – deixou pra trás os próprios pais, octogenários. A disputa pelo troféu Óleo de Peroba de Ouro será acirrada.

Isso não deveria nem ser notícia no país onde já tivemos, nesta mesma pandemia,  amostras do quão baixo pode chegar um administrador público sem ética. Fica difícil superar quem tira uma grossa comissão da compra de respiradores no exato momento em que as pessoas morrem sem ar pra manter a vida. Mas alguns brasileiros buscam a perfeição, nem que seja na calhordice.

Longe de ser filósofo ou cientista social, o que me atingiu diretamente no caso de Jupi foi o risco de ter o mesmo sangue de um daqueles pilantras. Como proceder em casos assim? Os manuais de etiqueta deveriam trazer esse capítulo – pelo menos, nas versões brazucas. A gente nunca sabe quando vai ser surpreendido por, digamos, um chefe que mata a ex-namorada a tiros. É preciso saber o que dizer quando a vida nos transforma em celebridade terceirizada, ponto de referência em conversa alheia. “Sabe aquela mulher que matou o marido, picotou e colocou numa sacola térmica? É madrinha dele!”

Pelo menos desta vez, estou livre da má fama. Minha linhagem iniciada em Jupi é formada por uma longa série de anônimos trabalhadores migrantes. Mas a Wikipedia me deixou com a pulga atrás da orelha. No verbete dedicado a Jupi – cujo nome vem de um espinho da caatinga -, consta que os primeiros habitantes da região foram os índios Caetés. Para refrescar a memória, trata-se da mesma tribo que, durante uma excursão ao litoral – que hoje pertence à Paraíba -, pescou e passou nas brasas o bispo Pero Fernandes Sardinha, em 1556.

Será que tem algum DNA caeté na minha ficha? Repasso mentalmente as dezenas de tios e quase uma centena de primos. Como em toda família nordestina, tem sempre a história da bisavó caçada no laço. No quesito religioso, tem de um tudo: católico, evangélico, espírita, budista, ateu. Religioso profissional de verdade, só um primo que morava em Mauá, na Grande São Paulo, e virou padre. Pensando bem, nunca mais tive notícia dele.

Autor:

Dramaturgo, autor-roteirista de novelas, cronista, jornalista. Paulistano.

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